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A covid-19, Popper e o Direito Internacional

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Por Édis Milaré e Roberta Jardim de Morais

As suspeitas de que o SARS-CoV-2 poderia ter alcançado os seres humanos por meio da transmissão animal, fizeram com que a Organização Mundial para a Saúde Animal (OIE), criasse um comitê ad hoc para tratar especificamente do tema. O referido grupo tem interagido diretamente com a Organização Mundial de Saúde – OMS e com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

A despeito do alarde que se tem verificado sobre essa questão, o certo é que transmissões entre espécies não são novidade. Em trabalho desenvolvido em 2017 com o apoio do US Department of Homeland Security S&T, K.M., Smith et al elucidam que 60% das doenças infecciosas que atingem o ser humano são considerados zoonoses (patógenos transmitidos entre animais e humanos), dos quais 70% têm como núcleo patógenos originários da fauna silvestre.

Historicamente, o intercâmbio de doenças entre espécies permanecia recluso em razão de barreiras naturais, geográficas e culturais. No entanto, com a intensificação do trânsito internacional de pessoas e mercadorias, a disseminação de tais enfermidades passou a ocorrer em dias ou até horas, representando ameaça à segurança alimentar, à saúde pública e à estabilidade econômica, como já reconhecido pela FAO e a OMS em relatório de 2004.

Por tal motivo, a atuação das chamadas formulating international agencies, como a OIE, já mencionada acima e a Comissão do Codex Alimentarius, ambas compostas por especialistas de diversos países que participam do processo de elaboração de standards em consonância com as melhores práticas científicas e tecnológicas, passou a ser considerada essencial para orientar as boas práticas do comércio internacional visando a minimização dos riscos sanitários e fitossanitários.

A OIE desenvolve standards e guidelines, que visam a reduzir os riscos do comércio internacional de animais e dos produtos deles derivados enquanto a Comissão do Codex Alimentarius desenvolve uma série de padrões, códigos de prática e recomendações de regulação alimentar com o objetivo de proteger a saúde dos consumidores e assegurar a boa-fé no comércio internacional.

O processo de elaboração de tais standards conta com a colaboração de experts, sendo conhecido como expert-group law making, que amplia a qualidade da base regulatória. Tais standards fazem parte da new international law, assim considerada por não advir de fontes consolidadas no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. O trabalho conjunto das duas organizações é, portanto, de grande relevância para a gestão de riscos no que concerne à segurança da saúde humana, animal e alimentar. Tanto é assim que é reconhecido e consagrados pela OMC.

A despeito de as evidências sugerirem que a origem do SARS-CoV-2 em humanos seria a transmissão entre espécies, até o presente momento ainda não há confirmação da fonte animal. No entanto, o fato de o sequenciamento genético do vírus SARS-CoV-2 ser muito próximo de um parente encontrado em populações de morcegos da espécie horseshoe, faz com que aquela hipótese se mostre como a mais plausível para explicar a sua procedência.

Desse modo, o advento da covid-19 conduz a reflexões sobre o respeito à tradição da comercialização e utilização de animais silvestres de maneira absolutamente desregulada, muitas vezes fundada em certezas arraigadas que não têm mais lugar nas sociedades hodiernas vis-à-vis a padrões sanitários e fitossanitários alcançados e harmonizados por instituições internacionais, a exemplo dos OIE Codes, do Codex Alimentarius da FAO e do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da Organização Mundial do Comércio (SPS) da OMC.

Nesse passo, Popper apregoa que o conhecimento científico é dinâmico e marcado pelo encontro de soluções por meio da utilização do método de ensaios e erros, não havendo lugar para as certezas absolutas e estanques. Para ele, era preciso ter uma sociedade aberta à renovação constante do conhecimento, motivada pela tensão entre saber e não saber e resultante de uma crítica recíproca entre cientistas, a qual decorre tanto da cooperação quanto da competição entre eles. Esse conhecimento estruturado pela somatória das práticas científicas conjuntas estará em frequente mutação, mas, por um determinado período, até que seja ultrapassado, equivalerá a uma verdade absoluta.

Pois bem. Até o presente momento, o melhor conhecimento disponível acerca das mais aconselháveis práticas sanitárias e fitossanitárias no que tange ao comércio de animais e alimentos de origem animal está consolidado em guidelines como os OIE Codes e o CODEX Alimentarius.

Tanto é assim que, com o advento da covid-19, a OIE já está traçando novas diretrizes para o estabelecimento de estratégias mais aprofundadas de mitigação de riscos, considerando inclusive a relevância cultural de algumas práticas de alto risco, destacando a necessidade de se adotar abordagem multidisciplinar para o tema, englobando a ação de veterinários, economistas, microbiologistas, engenheiros alimentares, cientistas sociais.

Ora, diante da disponibilidade de um arcabouço normativo tão elaborado e em constante evolução sobre segurança alimentar, qual a razão de a comunidade internacional ainda admitir determinadas práticas dele dissonante? A resposta é simples, a ausência de força obrigatória dos standards e guidelines mencionados nesse artigo, muitas vezes considerados como soft law ou droit vert.

Daí que, a despeito de talvez ainda se mostrar prematuro dar início a reflexões sobre eventuais políticas a serem desenvolvidas no cenário que sucederá o pesadelo da covid-19, certo é que o fortalecimento de instituições internacionais e dos guidelines por elas criados seguramente auxiliará na tomada de consciência de que determinadas práticas devem ser revistas em nome de um bem maior, que é a saúde de todos, em uma escala global.

Artigo publicado no dia 8/4 no Valor Econômico Online.
https://valor.globo.com/opiniao/artigo/a-covid-19-popper-e-o-direito-internacional.ghtml

#direitodoambiente #covid19 #direitointernacional

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