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Milaré

Carroças: crueldade ou necessidade? 

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Giovanna Arbia Chiarella

O uso de tração animal será sempre um tema delicado e contraditório em que, acredito, nunca se chegará a um consenso. Em teoria, a tração animal seria a alternativa mais econômica para o transporte, pois o animal possui grande adaptabilidade, podendo ser utilizado praticamente em qualquer terreno. 

Em verdade, não precisamos de muita vivência para presenciar diariamente nas ruas das cidades carroças sendo puxadas por equinos famintos, sedentos, machucados – muitas vezes pelos apetrechos presos às próprias carroças –, sendo submetidos a todo tipo de maus-tratos. Então, o questionamento que fica é: esse cenário é de crueldade ou de necessidade? 

A carroça é um meio de transporte que antecede o advento dos veículos a vapor. Movida por tração animal, era o meio de transporte mais utilizado para os deslocamentos de carga de um lugar para  outro. Ultimamente, o número de veículos do tipo para transporte de carga e remoção de entulho em grandes centros urbanos (inclusive São Paulo) tem aumentado consideravelmente. Também não é raro o retrato de tração humana nesses mesmos locais.

Bonde de tração animal. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], acervo Biblioteca Nacional (BNDigital).

Seja dita a verdade: isso prova que a circulação de carroças por meio  dos veículos de tração animal garante o sustento de inúmeras famílias das áreas urbanas dos municípios brasileiros. 

Normalmente, os carroceiros estão em uma posição de trabalho informal, na maior parte das vezes em situação de vulnerabilidade social e ausência de cursos profissionalizantes, o que torna a emancipação desses trabalhadores mais complexa. 

Se as carroças passarem a ser totalmente proibidas no Brasil, como essas pessoas serão reinseridas no mercado de trabalho? E mais, como gerarão renda para manter suas famílias? 

É nesse delicado cenário de desassistência social que do outro lado temos a crueldade animal a que estão submetidos os cavalos. 

Na maioria dos casos, os animais trabalham longas horas sem descanso, em ambientes de risco (muitas vezes em meio ao trânsito), sob pressão, chibatadas, expostos a intempéries, sol exaustivo e carregando pesos, entulho e pessoas, tudo junto ao mesmo tempo. 

No fim da vida, não é raro viralizar na internet cenas desses mesmos animais sendo abandonados para morrer, como um objeto meramente descartável. 

Daí entra a questão legal. No Brasil, o Decreto-Lei 3.688/1941, que trata das Contravenções Penais, prevê em seu artigo 64 que a quem tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo é aplicada pena de prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa. 

Também há a previsão do artigo 32 da Lei Federal 9.605/1998 de que a pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa, a quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos e/ou realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. 

O § 2º do artigo ainda prevê que a pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal, evento muito comum nesses contextos. 

Seja como for, mesmo com a legislação acima, os animais de tração estão longe de serem protegidos e tratados com dignidade e respeito. 

Uma das  respostas a isso são algumas leis específicas estaduais que proíbem veículos de tração animal. No Distrito Federal, por exemplo, a Lei 5.756/2016, que dispõe sobre a proibição da circulação de veículos de tração animal em vias do Distrito Federal, ao passo que proibiu a circulação de carroças na capital, ofereceu cursos profissionalizantes e criou linhas de financiamento para que esses profissionais comprem carro ou bicicleta. 

Foi um exemplo de lei que abordou a questão social que envolve os carroceiros, propondo a construção de um plano para a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, em programas sociais do governo, e trouxe também um plano de educação para qualificá-los adequadamente a novas profissões. 

Outro exemplo foi em Belo Horizonte. A Lei Estadual 11.285/2021 que criou o Programa de Substituição Gradativa dos Veículos de Tração Animal no Município mineiro tem um Projeto de Lei em tramitação atualmente para que haja redução de dez para cinco anos do prazo para o encerramento das atividades. O texto altera o prazo previsto na lei até janeiro de 2031 para extinção das carroças, antecipando a data para janeiro de 2026. 

No desdobramento mais recente de que se tem notícia, por  uma decisão proferida pelo juiz da Vara Cível de Capão da Canoa, Município do Rio Grande do Sul, foi concedida tutela de urgência determinando que o Município inicie imediatamente e conclua, no prazo de três meses, o cadastramento social dos condutores de veículos de tração animal (VTAs) e dos condutores de veículos de tração humana (VTHs). 

A Prefeitura deverá transpor esses condutores para outros mercados de trabalho por meio de políticas públicas, além de adotar medidas concretas de proteção aos animais de grande porte. 

Curioso pensar que o meio de transporte que já foi, um dia, sinal de nobreza, hoje é tachado como um problema nos grandes centros urbanos. É certo que não temos uma resposta clara para o questionamento que inicia nossa reflexão, mas, se o objetivo é inibir a exploração de cavalos em veículos de transporte e seu posterior abandono, a lógica deveria ser a mesma para os seres humanos que estão envolvidos nessa mesma situação de extrema vulnerabilidade social, de dotá-los de condições dignas de vida, que garantam a sua sobrevivência e das suas famílias. 

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