Considerações sobre as audiências de conciliação no âmbito do processo administrativo federal

31 de março de 2021

Por Maria Clara Rodrigues Alves Gomes e Stella Kusano

Sabe-se que com a edição do Decreto Federal 9.760, de 11.04.2019, o Decreto Federal 6.514/2008, que dispõe sobre o processo administrativo federal para apuração destas infrações ao meio ambiente, sofreu significativas alterações, sobretudo porque inovou e criou a possibilidade de se promover a conciliação no âmbito de tais processos administrativos instaurados para apuração de infrações ambientais.

Ainda, a Instrução Normativa Conjunta 02, de 29.01.2020, editada pelo IBAMA e ICMBio para regulamentar os processos administrativos de apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente no âmbito desses dois órgãos ambientais, também dispõe sobre a possibilidade de realização de audiência de conciliação após a lavratura de auto de infração e os procedimentos para sua ocorrência.

Nesse sentido, conforme prevê os artigos 95-A do Decreto Federal 6.514/2008 e 42 da Instrução Normativa Conjunta 02/2020, a conciliação deve ser estimulada pela Administração Pública federal ambiental, com o fim de encerrar os processos administrativos federais decorrentes de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. 

Assim, lavrado o auto de infração, o autuado deve ser notificado para manifestar seu eventual interesse no agendamento de audiência de conciliação ambiental e, com a manifestação positiva, será suspenso o prazo para apresentação de defesa administrativa, até a sua realização.

Apesar de a conciliação ambiental ter sido instituída em 2019, por meio do referido Decreto 9.760/2019, a pandemia causada pelo Coronavírus resultou na suspensão dos andamentos das audiências de conciliação ao longo do ano de 2020.

Como forma de superar o entrave criado pela pandemia, em 30.11.2020, foi publicada a Portaria Conjunta 589, editada pelo IBAMA e ICMBio, que dispôs sobre a retomada progressiva dos agendamentos das audiências e estabelece diretrizes e critérios aplicáveis aos processos administrativos que se encontrem em fase de conciliação ambiental, bem como aos autos lavrados durante o período em que perdurar essa situação emergencial de saúde pública. Com isso, buscou-se viabilizar as audiências presenciais com o devido protocolo de segurança, além de reforçar a opção do autuado por realizar a sessão de conciliação ambiental por videoconferência, como já era previsto no artigo 98-B, § 5º, do Decreto Federal 6.514/2008.

Com a perspectiva dessa retomada, em 09.12.2020, o IBAMA publicou cinco editais (nº 1/2020, nº 2/2020, nº 3/2020, nº 4/2020 e nº 5/2020) com o objetivo de dar conhecimento da edição da referida Portaria Conjunta 589/2020 e listar os autuados abrangidos por essa norma, os quais seriam notificados a manifestar seu eventual interesse na realização de audiência de conciliação ambiental ou requerer a adesão, independentemente da realização de audiência de conciliação ambiental, a uma das soluções legais possíveis para encerrar o processo, previstas no 67 da Instrução Normativa Conjunta 02/2020.

A implementação do mecanismo das audiências de conciliação no âmbito dos processos administrativos de apuração de infrações ambientais ainda é recente, de modo que os procedimentos a ele relacionados, previstos no Decreto 6.514/2008 e na Instrução Normativa Conjunta 02/2020, poderão ser, eventualmente, adaptados/alterados tendo em vista os efeitos práticos verificados e a condução adotada pelos órgãos ambientais. 

Não há dúvida, de qualquer forma, de que tal mecanismo é relevante e pode representar uma chance de se estabelecer um maior diálogo entre o autuado e o órgão ambiental, com o fim de, em face a uma conduta infracional, ser viabilizada uma solução consensual mais eficaz de resolução desses processos administrativos, de modo que se atenda aos interesses da sociedade e do meio ambiente, ali protegidos pela autoridade ambiental, mas que seja menos burocrática, mais célere e efetiva.

Contudo, cumpre mencionar que essa importante função que as audiências conciliatórias podem representar ainda fica limitada, se adotada uma interpretação mais restritiva da legislação vigente.

Isso porque, o artigo 98-A, inciso II, do Decreto 6.514/2008, e o artigo 59 da Instrução Normativa Conjunta 02/2020 estabelecem que a audiência de conciliação deve ser realizada para (i) explanar ao autuado as razões de fato e de direito que ensejaram a lavratura do auto de infração; (ii) apresentar as soluções legais possíveis para encerrar o processo, tais como o desconto para pagamento, o parcelamento e a conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente; (iii) decidir sobre questões de ordem pública; e (iv) homologar a opção do autuado por uma das soluções de encerrar o processo.

A Instrução Normativa Conjunta 02/2020 ainda estabelece, no referido artigo 67, que são soluções legais possíveis para encerrar o processo administrativo, nos casos de multa simples: (i) o pagamento com desconto; (ii) o parcelamento; e (iii) a conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.

Em complemento, o artigo 44 da mesma Instrução Normativa indica que não cabe na conciliação ambiental a produção de provas pelo autuado, ressalvada a apresentação, em audiências, daquelas pré-constituídas, que apontem para a existência de vícios sanáveis ou insanáveis verificáveis de plano, mediante análise dos autos ou de provas pré-constituídas.

A partir de uma interpretação mais restritiva de tais dispositivos legais, é possível adotar o entendimento de que as únicas soluções possíveis para o encerramento do processo em sede de conciliação, caso não seja verificada uma questão de ordem pública, listadas no artigo 59, § 1º, da Instrução Normativa Conjunta 02/2020, seriam o pagamento com desconto, o parcelamento ou a conversão da multa simples, o que aponta para um rol de opções muito limitadas para a solução dos processos de apuração de infrações.

Considerando esse entendimento, não seria possível, portanto, discutir em sede de audiência conciliatória o mérito da autuação, mas, tão somente, as opções limitadas de o autuado encerrar definitivamente o processo, declarando a sua desistência de impugnar judicial e administrativamente a autuação e sua renúncia a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundamentariam as referidas impugnações, conforme estabelecem o artigo 98-C, inciso IV, alínea ‘a’, item 2, do Decreto 6.514/2008 e o artigo 43, inciso II, da Instrução Normativa Conjunta 02/2020.

Tal imposição das normas limita as possibilidades de acordo entre o órgão ambiental e o autuado, na medida em que outras soluções legais poderiam ser adotadas para, igualmente, encerrar o processo administrativo de forma mais célere, porém com eventual discussão acerca das peculiaridades, dos fatos e do mérito envolvendo a suposta conduta infracional, sem deixar de promover a cabível proteção e reparação do meio ambiente.

Ademais, outro aspecto que desestimula o autuado a optar por uma das soluções legais indicadas no artigo 67 da Instrução Normativa Conjunta 02/2020 para encerramento do processo administrativo, é que elas ensejam a reincidência. Isso porque, na hipótese de ser lavrado novo auto de infração contra o autuado, inevitavelmente será aplicada a reincidência prevista no artigo 11 do Decreto 6.514/2008, tendo em vista o que estabelece o artigo 94, § 1º, da Instrução Normativa 02/2020, de acordo com o qual se considera julgado o auto de infração cuja multa é paga, parcelada ou convertida (soluções legais indicadas no referido artigo 67).

De outro modo, caso se adote uma interpretação mais ampla dos artigos 98-A, inciso II, do Decreto 6.514/2008, e 59 da Instrução Normativa Conjunta 02/2020, é possível que a audiência de conciliação se torne um mecanismo ainda mais relevante para a resolução de conflitos administrativos.

Da leitura de tais artigos é possível inferir que um dos objetivos da audiência de conciliação seria apresentar as soluções legais possíveis para encerrar o processo. Desse modo, ideal que se considerasse o desconto, o parcelamento e a conversão como hipóteses de solução dos processos (rol exemplificativo), e não as únicas opções do autuado e do órgão ambiental para encerramento dos processos.

Seguindo por essa linha de entendimento de tais normas, seria possível ampliar o escopo do debate instaurado pela audiência de conciliação para permitir a avaliação das circunstâncias específicas e do mérito de cada caso e, com isso, buscar uma composição que proteja de forma eficiente o meio ambiente.

Importante destacar também que, ainda que outras soluções de encerramento do processo administrativo de apuração de infração sejam consideradas, avaliando-se, inclusive, as peculiaridades de cada caso, a realização de conciliação ambiental nesses termos não significaria prejuízos aos meio ambiente, na medida em que sua obrigação de reparar o dano ambiental, caso aplicável, conforme estabelece o artigo 98-C, § 2º, da Instrução Normativa Conjunta 02/2020 não poderia ser afastada.

Ante essas considerações, verifica-se que, a depender de como forem implementadas pelos órgãos ambientais, as audiências de conciliação no âmbito do processo administrativo federal podem se tornar um importante mecanismo para promover maior eficácia na apuração e julgamento de infrações ambientais, tornando concertas as ações de fiscalização promovidas, sem, de modo algum, deixar de promover a proteção do meio ambiente e assegurar a reparação do dano ambiental, quando este for verificado. 

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