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Milaré

O Decreto 11.373/2023 e as alterações no Decreto 6.514/2008

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                                                                                        Por Maria Clara Rodrigues Alves Gomes

O Decreto 11.373, de 1° de janeiro de 2023, promoveu relevantes alterações no Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre infrações ambientais e as respectivas sanções administrativas e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações. 

A importância dessas modificações, conforme constatado no artigo 3°, se deve à revogação expressa de muitos dispositivos anteriormente inseridos ou alterados, principalmente por força dos Decretos 9.760/2019 e 11.080/2022, além da introdução de novas disposições na norma. Convém sublinhar, aliás, que essas recentes alterações se alinham com o entendimento do atual governo, uma vez que já vinha questionando a constitucionalidade do Decreto 9.760/2019 (que alterou diversas disposições do Decreto 6.514/2008, inseridas pelo Decreto 9.179/2017), por meio da ADPF 755, ajuizada pelos partidos PT, PSB, PSOL e Rede perante o Supremo Tribunal Federal em outubro de 2020. Assim, na leitura global da nova norma, observou-se que foram resgatadas diversas disposições do Decreto 9.179/2017, sobretudo no que concerne ao instituto da conversão das multas ambientais e sua sistemática, como será demonstrado adiante.

Das alterações mais relevantes, inicialmente, destaca-se que os dispositivos que estabeleciam o funcionamento do Núcleo de Conciliação Ambiental e a realização das audiências de conciliação foram revogados (artigo 145 e 95-A, com redação dada pelo Decreto 9.760/2019). Com isso, deixa de existir a etapa da conciliação ambiental no âmbito dos processos administrativos federais de apuração de infrações administrativas ambientais. 

Essa alteração abrevia a etapa da audiência de conciliação, de modo que a opção por aderir a uma das soluções legais possíveis para o encerramento do processo administrativo, antes ofertadas em audiência de conciliação, deve, agora, ser manifestada diretamente pelo interessado, no prazo de defesa. Assim, nos termos do atual artigo 96, §5º, no prazo de vinte dias, contados da cientificação do autuado, lhe caberá (i) apresentar defesa; ou (ii) manifestar-se pela adesão a uma das soluções legais possíveis para o encerramento do processo, quais sejam: pagamento da multa com desconto de 30%; parcelamento da multa sem desconto; ou conversão da multa simples em serviços de preservação, de melhoria e de recuperação da qualidade do meio ambiente.

Importante destacar, neste ponto, que essa alteração afeta os processos que se encontram aguardando a designação/realização de audiência de conciliação, na medida em que, como mencionado, tal etapa deixa de existir. Como não há uma regra clara no Decreto 11.373/2023 que preveja uma transição entre a sistemática anterior e a atual, cria-se uma insegurança jurídica ao autuado, na medida em que fica incerta a data inicial para a apresentação da defesa. De uma interpretação bastante conservadora dessa situação é possível entender que, havendo ciência inequívoca da autuação pelo interessado, a partir da publicação do Decreto 11.373/2023, ocorrida em 02.01.2023, teve início o curso do prazo de defesa desses processos, nos termos do artigo 96, o qual se esgotou em 22.01.2023 (domingo), prorrogando-se o prazo fatal para o dia 23.01.2023 (primeiro dia útil seguinte). Por outro lado, diante da ausência de regra, nos casos em que houve tempestivo pedido de realização de audiência de conciliação, pode-se defender que o prazo para apresentação de defesa encontra-se suspenso, até nova intimação pelo órgão federal e/ou edição de norma específica que regule a matéria. Certamente que isso ocasionará amplo debate acerca da tempestividade de defesas que venham a ser apresentadas nessas situações. 

Ainda, da análise do artigo 96, §5º, bem como do artigo 113, observa-se que foi adotada uma redação alinhada com a Lei 9.605/1998 (artigo 71, inciso I), de modo que esses dispositivos estabelecem a possibilidade de o autuado apresentar “defesa” ou “impugnação” ao auto de infração. Entretanto, nenhuma das figuras é conceituada, seja na Lei 9.605/1998, seja no próprio Decreto 6.514/2008, de modo que não se pode dizer que sejam distintas. Com efeito, adota-se costumeiramente o termo “defesa administrativa” para peça em que o interessado apresenta todas as considerações pertinentes à autuação, inclusive em termos de impugnação. Assim, parece não haver diferenciação entre defesa e impugnação e os termos poderão ser usados como sinônimos.

Quanto ao artigo 116, uma vez que revogadas as alterações introduzidas nesse dispositivo pelo Decreto 11.080/2022, a nova redação não mais impõe ‘pena’ de não conhecimento da defesa administrativa à não juntada de procuração outorgada a advogado que representar o interessado. Com isso, a possibilidade de regularizar eventual pendência/irregularidade quanto à representação do autuado se amplia e não impede o conhecimento e a análise da defesa administrativa.

Aparentemente com a intenção de aumentar a arrecadação das multas aplicadas foi que, como já mencionado,  o Decreto 11.373/2023 fez significativas alterações nas regras atinentes à conversão de multas em serviços de preservação, de melhoria e de recuperação da qualidade do meio ambiente.  

Recorde-se que, pela regra anterior, estabelecida nos artigos 142 e 143 (com redação dada pelos Decretos 9.760/2019 e 11.080/2022), o requerimento pela conversão de multas poderia ser feito até antes da decisão administrativa de segunda instância e, a depender do momento do requerimento, concediam-se percentuais distintos de desconto no valor da multa. Assim, quanto antes fosse requerida a conversão, maior o desconto conferido. Ademais, não se fazia distinção de percentuais de desconto entre a conversão direta (em que o próprio interessado executa o projeto de melhoria da qualidade ambiental) e a indireta (custeada pelo interessado, mas executada por entidade previamente selecionada pelo órgão emissor da multa). Em síntese, conferia-se desconto sobre o valor das multas de: (i) 60%, quando requerida a conversão até a audiência de conciliação; (ii) 50%, quando requerida até a decisão de primeira instância; e (iii) 40%, quando requerida até a decisão de segunda instância. Com isso, aumentavam-se as oportunidades de pedido de conversão das multas no decorrer do processo, sendo possível fazê-lo, inclusive, em processos já com decisão administrativa de primeira instância. Além disso, o artigo 148, com redação dada pelo Decreto 11.080/2022, dispunha que era devido o desconto de 60% sobre o valor da multa aos interessados que tivessem, sob a égide de regimes jurídicos anteriores, pleiteado tempestivamente a conversão.

O novel Decreto 11.373/2023, por sua vez, basicamente restabeleceu a sistemática do Decreto 9.179/2017, de modo que o pedido de conversão de multa somente pode ser feito até a apresentação das alegações finais, conforme o artigo 142.

Além disso, no artigo 143 foram alterados os percentuais do desconto, conforme a fase em que a conversão é requerida e a modalidade escolhida (direta ou indireta). Em optando o interessado pela conversão na forma direta, concede-se desconto de: (i) 40%, se requerida até a apresentação da defesa administrativa; e (ii) 35%, se requerida até as alegações finais. No caso do pedido de conversão na modalidade indireta, são os descontos de: (i) 60%, até a apresentação da defesa administrativa; e (ii) 50%, se requerida até as alegações finais. Portanto, retoma-se a sistemática de incentivo para aderir à conversão na modalidade indireta, na medida em que estabelece percentuais mais altos de desconto para esse tipo de conversão. Note-se, ainda, que a nova norma, novamente buscando estimular a conversão indireta, permite que o valor a ser pago seja parcelado em até 24 vezes, conforme a regra anterior do Decreto 9.179/2017 (§3º do artigo 143).

Ainda, foi incluído o artigo 142-A, de acordo com o qual (i) na conversão direta volta a ser possível a reunião de autuados para implantação conjunta de projeto de melhoria da qualidade ambiental, como era antes autorizado pelo Decreto 9.179/2017, e que deixou de ser possível com as alterações de 2019 (§1º); (ii) na conversão indireta, o interessado pode, e não mais é obrigado, a deixar a cargo do órgão ambiental a escolha do projeto destinatário dos recursos da conversão, permitindo, assim, que o interessado, a seu critério, escolha o projeto beneficiário ou deixe que o órgão o faça (§2º); e (iii) passa a ser responsabilidade dos órgãos detalhar melhor a operacionalização da conversão indireta (§3º), o que permite que cada órgão federal ajuste o procedimento da conversão à sua realidade e práticas.

O Decreto 11.373/2023 incluiu no Decreto 6.514/2008 o artigo 144-A, resgatando basicamente as disposições do anterior artigo 144, com redação dada pelo Decreto 9.179/2017, que havia sido revogado pelo Decreto 9.760/2019. Assim, ao tratar do pedido de conversão da multa direta, estabelece que deve ser instruído com o respectivo projeto; no entanto, amplia para de 30 para 60 dias o prazo a ser concedido ao interessado para apresentar tal projeto, caso não o encaminhe com o requerimento de conversão; e possibilita que o autuado proceda a ajustes e complementações do projeto.

No que se refere ao artigo 145, como o pedido de conversão só pode ser feito até as alegações finais e não existe mais o Núcleo de Conciliação Ambiental, sua análise fica a cargo, exclusivamente, da autoridade julgadora de primeira instância. Em segunda instância caberá ser avaliado, apenas, eventual recurso contra o indeferimento do pedido de conversão (§4º). Neste ponto cumpre observar que não há regra de transição estabelecida para as situações em que o pedido de conversão foi feito já em segunda instância e este venha a ser indeferido. 

Quanto ao Termo de Compromisso a ser celebrado quando do deferimento do pedido de conversão de multas, a alteração mais relevante está na inclusão do §3º-A no artigo 146, estabelecendo cláusulas específicas para o termo de conversão na modalidade indireta (artigo 142-A, inciso II). Novamente, é restaurado o que previa o antigo Decreto 9.179/2017, revogado pelo Decreto 9.760/2019. Em suma, esse termo de compromisso deve ser instruído com: I – comprovante de depósito integral ou de parcela; II – outorga de poderes pelo autuado ao órgão federal emissor da multa para a escolha do projeto a ser apoiado; III – autorização do infrator ao banco público; IV – inclusão da entidade selecionada como signatária e suas obrigações para a execução do projeto; e V – disposição que veda o levantamento do valor depositado pelo autuado ou órgão federal emissor da multa. Outrossim, nesse artigo 146 foi incluído o §10, vinculando o valor depositado pelo interessado, a título de conversão, ao projeto indicado no termo. Com isso, ‘carimbam-se’ os valores depositados para a finalidade específica para os quais foram aportados.

Vale mencionar, ainda, que foi revogado o artigo 148, com redação dada pelo Decreto 11.080/2022, que estabelecia a regra de transição entre a sistemática ali definida e as anteriores, considerando as diversas alterações que o instituto da conversão das multas e os procedimentos respectivos sofreram, desde 2017. O atual artigo 148 contém disposições, de caráter geral, quanto ao acompanhamento e à fiscalização da execução dos serviços prestados em decorrência das multas convertidas. Também trata da criação da Câmara Consultiva Nacional e do Programa de Conversão de Multas Ambientais.  

Quanto à regra de transição estabelecida pelo Decreto 11.373/2023, foi inserida no artigo 148-A, possibilitando, apenas, a adequação dos pedidos de conversão feitos anterior e tempestivamente aos termos desse Decreto. Essa regra parece, no entanto, ser insuficiente, diante das diversas situações existentes, em razão das diversas disposições/alterações que o regramento atinente aos pedidos de conversão já sofreu. Como mencionado, nos pedidos de conversão formulados após a decisão de primeira instância administrativa, como era autorizado pelo Decreto 11.080/2022, e que venham a ser indeferidos, a quem caberá o recurso cabível? E os processos com Termo de Compromisso em andamento, ainda não assinados, seguirão como estão ou devem ser ajustados? E os percentuais de desconto nos valores das multas, serão mantidos, conforme o pleito já requerido, ou deverão ser em conformidade com o novo regramento? Para todas essas situações a nova norma não trouxe resposta.

Note-se, ainda, que o Decreto 11.373/2023 aumentou de 20% para 50% o percentual dos valores arrecados em pagamento de multas aplicadas pela União a serem revertidos ao Fundo Nacional do Meio Ambiente – FNMA (artigo 13), o que denota intenção de fortalecer a atuação desse fundo por meio do reporte de recursos adicionais. Aqui, vale observar que também foi editado o Decreto 11.372, em 1º de janeiro de 2023, alterando o Decreto 10.224/2020, editado para regulamentar a Lei 7.797/1989, que criou o FNMA.

Por fim, registra-se que, de acordo com o artigo 2º do Decreto 11.373/2023, são convalidadas as notificações realizadas por edital para apresentação de alegações finais realizadas até a data de publicação do Decreto 11.080/2022 (24.05.2022). Essa disposição está associação à regra do artigo 122, que também sofreu alterações, e conflita com o entendimento de que a notificação para alegações finais tem que ser efetiva, pessoal, e não ficta. 

Sobre esse tema, vale lembrar que a forma pela qual devem ser notificados os interessados para apresentar alegações finais tem sido objeto de vários debates. A Presidência do IBAMA, inclusive, emitiu o Despacho nº 11996516/2022-GABIN, em 21 de março de 2022, pelo qual anulou todas as notificações (e atos praticados posteriores a essas notificações) que tenham sido feitas por edital, nas hipóteses em que fossem conhecidos e determinados os autuados/interessados, considerando-as ilegais por violarem os requisitos do artigo 26 da Lei 9.784/1999, que trata das intimações dos interessados em processos administrativos federais em geral. 

O parágrafo único do artigo 122, com redação dada pelo Decreto 11.080/2022, foi revogado. Apesar disso, a redação conferida a esse dispositivo pelo novel Decreto 11.373/2023 mantém a regra de que a intimação do interessado para apresentação de alegações finais deve ser: (i) postal com A.R.; (ii) eletrônica, desde que observe a legislação específica; ou (iii) por outro meio válido. A ideia é assegurar a intimação inequívoca e não ficta/presumida dos interessados. Especificamente no caso da intimação eletrônica, tratada no inciso II, remete-se ao artigo 96, §4º, o qual faz menção a legislação específica que regulamente tal intimação. No entanto, ainda não existe norma que regule as intimações eletrônicas em processos administrativos federais. Órgãos como o IBAMA e ICMBio, por exemplo, possuem sistemas eletrônicos de informações (o SEI) e, diante da nova norma, já passaram a realizar intimações eletrônicas, embora suas regras sejam ainda obscuras

Em conclusão, portanto, dessa análise do Decreto 11.373/2023, se verifica, em resumo, que houve a extinção das audiências de conciliação e do Núcleo de Conciliação Ambiental. Na prática, nas audiências que eram realizadas, tão somente eram ofertadas as soluções legais de resolução do processo, sem um debate efetivo sobre o mérito da autuação. Assim, embora a conciliação, como forma de resolução dos processos administrativos, devesse ser incentivada, na prática, pela sistemática que existia, o que ocorria era apenas um prolongamento da tramitação dos processos, com pouca efetividade das audiências. De qualquer forma, a nova norma continua a permitir que o interessado opte por uma das soluções legais de resolução do processo administrativo (as quais eram ofertadas na audiência de conciliação), mas devendo ele próprio fazer o requerimento, no prazo de defesa. Como mencionado, faltou, aqui, ser estabelecida uma regra de transição para as situações em curso, em que o autuado está com seu prazo de defesa suspenso, aguardando a designação/realização da audiência de conciliação. Essa lacuna causa insegurança jurídica aos autuados e poderá resultar em amplo debate acerca da tempestividade das defesas administrativas dos processos nessa situação.

No que concerne à conversão das multas, como visto, segue-se na missão de aprimorar o instituto, buscando maior adesão dos autuados a essa hipótese de resolução dos processos administrativos e, por consequência, maior arrecadação das multas aplicadas. Apesar disso, foi limitado à primeira instância administrativa o momento para requerer a conversão das multas, em contradição com essa pretensão da norma. Além disso, se verifica o restabelecimento de regras antes contidas no Decreto 9.179/2017 que haviam sido revogadas/alteradas por normas posteriores, sobretudo no sentido de incentivar a adesão à conversão na modalidade indireta, na medida em que prevê maiores descontos e até parcelamento em 24 vezes do valor. 

Por fim, como mencionado, a regra de transição insculpida no artigo 148-A do novel Decreto, no que se refere aos pedidos de conversão de multas formulados com base nas regras anteriores, não parece ser suficiente para resolver todas as situações em curso, como, por exemplo, os casos com pedido de conversão de multa apresentados após decisão de primeira instância administrativa. Outrossim, diante da extinção da conciliação ambiental, também não há regra de transição que defina o termo inicial do prazo de defesa para aqueles que aguardam a realização/designação da audiência de conciliação, o que cria extrema insegurança jurídica aos interessados.

Assim, será necessário que os órgãos editem regulamentos próprios para resolver as situações não enfrentadas/reguladas pelo Decreto 11.373/2023, ou mesmo será necessária sua alteração para a devida complementação.

Acesse o quadro comparativo com as mudanças mais relevanteshttps://milare.adv.br/wp-content/uploads/2023/01/Tabela-revisada-30-de-janeiro-de-20223-1.pdf

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