Flavia Rocha Loures
O meio ambiente está sempre evoluindo para responder aos choques que enfrenta; como dele somos parte, também carregamos uma capacidade inerente de adaptação.
Feliz Dia Internacional da Mãe Terra! O ano de 2020 encerra a Década Internacional da Biodiversidade, declarada pela ONU para contribuir para a implementação do plano estratégico da Convenção sobre Diversidade Biológica e, assim, para a preservação da riqueza natural do planeta. Por isso só, 2020 prometia ser um ano memorável para o direito internacional do meio ambiente como base essencial para os esforços globais de proteção da diversidade e abundância da vida na Terra. A expectativa original para este Super Ano da Biodiversidade, como vem sendo chamado, era a de que uma sequência de eventos estratégicos e interligados concluísse com decisões aumentando o grau de ambição e lançando os caminhos para avanços rápidos e urgentes em várias agendas e compromissos internacionais de sustentabilidade.
No contexto atual de crise, ainda acreditamos que o Super Ano da Biodiversidade pode ter impactos positivos, duradouros e realmente transformadores da nossa trajetória atual e da forma como nos relacionamos com os demais habitantes do planeta, nossa casa comum. Se isto ocorrer, porém, não será apenas, ou mesmo não necessariamente, pelas razões originalmente esperadas, i.e., o rico calendário de debates e decisões-chave de natureza política e jurídica no plano global.
1. Os Marcos do Super Ano da Biodiversidade
Entre os eventos sobre sustentabilidade planejados para 2020, destacam-se as reuniões das partes das Convenções da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB) e Mudanças Climáticas (CMC), respectivamente. Podemos chamar a CDB de tratado-mãe do direito e da prática internacional ambiental, por governar a conservação e o uso sustentável da diversidade genética, de espécies e de ecossistemas em todos os tipos de biomas. Já a CMC foca-se na questão das mudanças climáticas, uma das maiores ameaças à saúde do planeta, nossas economias e o bem-estar das nossas sociedades. Estes dois tratados lidam com crises ambientais gêmeas, intimamente interconectadas e interdependentes, ambas de proporções planetárias e relevância para a sustentabilidade ambiental, social e econômica e para a segurança jurídica e política de todas as nações e de todos os povos.
Em 2020, as partes de ambas as convenções deveriam se encontrar para a tomada de decisões não simplesmente rotineiras, mas consideradas mesmo nevrálgicas para a reversão das taxas atuais de perda da biodiversidade e o controle das causas e dos efeitos das mudanças climáticas, conforme abaixo:
Super Ano da Biodiversidade
*15ª Conferência das Partes da CDB (Kunming, China) – “Civilização Ecológica: Construindo um Futuro Compartilhado para toda a Vida na Terra”: Adoção de um novo Plano Estratégico, incluindo metas e objetivos, meios de implementação, mecanismos de monitoramento e instrumentos para prestação de contas. Uma vez adotado, o novo plano passa a valer a partir de 2021, por 10 anos.
*26ª Conferência das Partes da CMC (Glasgow, UK): Decisões sobre financiamento de longo prazo, mecanismos de implementação e outras questões não resolvidas na CoP anterior e que são essenciais para a eficácia do Acordo de Paris; análise de compromissos nacionais (NDCs) mais ambiciosos, novos ou revisados, a serem submetidos pelas partes ainda em 2020, representando a sua contribuição para o alcance dos objetivos do acordo;1 e apresentação do relatório do Comitê de Adaptação.
Tendo em vista, infelizmente, a situação de incerteza causada pela pandemia do coronavírus e que rapidamente se espalhou pelo mundo, com mais de um milhão de infectados, o calendário de 2020 já foi completamente alterado. Como peças de um dominó, os vários eventos planejados, inclusive aqueles considerados de caráter essencial para as negociações futuras sobre clima e biodiversidade, vêm sendo adiados ou cancelados, eventualmente forçando a postergação das duas conferências mais importantes do ano sobre esses temas. Novas datas ainda não estão confirmadas, havendo apenas a previsão de meados de 2021 para a reunião da CMC.
Até o momento, uma das poucas exceções a essa tendência de adiamentos e cancelamentos é a Cúpula da Biodiversidade, ainda planejada para 22-23 de setembro deste ano, sob o tema: “Ação Urgente em Biodiversidade para o Desenvolvimento Sustentável”. A cúpula está sendo organizada como uma parceria no âmbito da ONU, entre a Secretaria da CDB, o Programa para o Meio Ambiente e a Presidência da Assembleia Geral. Como faz parte dos debates gerais programados para a 75ª sessão da assembleia, a cúpula deve contar com a presença de chefes de governo e de estado.
Por outro lado, dois importantes eventos já foram cancelados. A Semana Mundial da Água consiste em uma já tradicional reunião anual dos atores do mundo inteiro envolvidos com recursos hídricos e temas correlatos, e que este ano estaria comemorando o seu trigésimo aniversário. Por sua vez, o Diálogo Interativo sobre Harmonia com a Natureza é um evento da Assembleia Geral da ONU, realizado anualmente desde 2011, no contexto do Dia da Terra, celebrado hoje, 22 de abril; e que informa a adoção de resoluções refletindo diferentes perspectivas dos participantes, entre governos e representantes da sociedade global organizada, quanto à construção de uma nova relação entre a humanidade e o Planeta.
Para alguns, essas grandes reuniões internacionais costumam ser nada mais que exercícios de futilidade – ou talk shops. No contexto do direito internacional ambiental, porém, em que não existem mecanismos centralizados para editar as leis e fiscalizar, incentivar e garantir o seu cumprimento, aqueles papéis foram assumidos pelas chamadas conferências das partes, i.e., congregações periódicas de representantes dos estados e de todos os outros setores da sociedade organizada global, agindo no âmbito do regime criado sob cada tratado multilateral e com vistas à sua implementação efetiva.
No período que antecede cada conferência, ademais, realizam-se eventos preparatórios e que têm os seguintes objetivos: a) aprofundar as discussões técnicas e jurídicas sobre questões polêmicas e complexas; e que vêm dificultando a formação de consenso; b) desenvolver acordo entre os estados e mobilizar o apoio de outros atores de forma progressiva; c) aumentar a visibilidade política dos temas em debate; d) formular recomendações e reunir compromissos robustos que gerem ímpeto adicional para ações transformadoras e visionárias; e) e permitir o contato regular, o intercâmbio de experiências e a formação de parcerias entre os vários segmentos da comunidade internacional – tudo de forma a proporcionar as melhores condições possíveis de sucesso durante os eventos oficiais entre os respectivos estados-parte para a tomada de decisões no âmbito do direito internacional ambiental.
Assim sendo, vale indagar até que ponto esta reviravolta no formato escolhido pela comunidade internacional para celebrar 2020 pode comprometer a nossa determinação de construir uma nova trajetória, para nós e todos os outros seres com quem compartilhamos este espaço – ou, ao menos, frear o ritmo de urgência e vigor com que caminhávamos naquela direção.
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Artigo publicado hoje (22/4) no portal Migalhas