Identidade ecológica e o julgamento do Supremo (*)

31 de agosto de 2024

Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter declarado, em 28 de fevereiro de 2018, no julgamento das ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937 e da ADC 42, a constitucionalidade, entre outros, do artigo 48, parágrafo 2º, e do artigo 66, parágrafos 3º, 5º e 6º da Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal) e reconhecido, por maioria de votos, que a adoção do bioma como critério para compensação de reserva legal é constitucional, a discussão não se encerrou com a publicação do acórdão.

Em primeiro lugar, em razão de erro material, pois constou na ementa que o resultado do julgamento em relação à aplicação do artigo 48, parágrafo 2º (que prevê a compensação de reserva legal por meio de Cotas de Reserva Ambiental – CRA), seria, por suposta maioria, uma interpretação segundo a qual a compensação só seria autorizada entre áreas com identidade ecológica. Entretanto, a análise dos votos revela que, na realidade, os ministros entenderam majoritariamente pela constitucionalidade do artigo 48, parágrafo 2º, sem invocar a identidade ecológica – expressão que carece de definição técnica ou legal e cuja adoção representa, na prática, eliminar a possibilidade de compensação de reserva legal dentro do mesmo bioma. Correta, portanto, foi a oposição de embargos de declaração, cujo julgamento teve início em 25 de agosto de 2023, em sessão virtual, e foi interrompido em razão de pedido de vista. Atualmente, após pedido de destaque, aguarda-se a retomada em sessão presencial.

O equívoco, entretanto, é bem maior. Pelo teor dos votos já proferidos até o momento, no julgamento dos EDs, verifica-se que, ao invés de reafirmar a constitucionalidade do artigo 48, parágrafo 2º, e manter o adequado critério previsto pelo legislador (mesmo bioma), o entendimento que está em construção estende ao artigo 66, parágrafos 5º e 6º, da lei a suposta interpretação conforme (na prática não alcançada) conferida ao parágrafo 2º do artigo 48, no sentido de exigir identidade ecológica entre áreas para fins de compensação de reserva legal. 

A questão preocupa, uma vez que representa mais do que a identificação do mesmo bioma e corresponde a impor perfeita equivalência (espelhamento) entre as características ecológicas de um perímetro de vegetação excedente e as de outro em que se verifica o déficit de reserva legal. Na prática, cumprir esta exigência é impossível: não há um ecossistema idêntico a outro. 

O rol de critérios previstos na Lei nº 12.651/2012 para a compensação da reserva legal vai além do bioma, abarcando uma série de outros fatores, entre eles a identificação detalhada do imóvel, de seu proprietário e das características de uso e ocupação, o que gera subsídios para a formulação de políticas públicas. Exige-se também a emissão e aprovação de laudos por órgãos técnicos, o que contribui para o levantamento de perfil socioeconômico e ambiental de atividades e regiões e cria um valioso banco de dados a ser utilizado para outros fins – como regularização fundiária, gestão de recursos hídricos e planejamento para a redução de desigualdades regionais e sociais-, além de promover a preservação de áreas prioritárias e assegurar que os imóveis rurais cumpram sua função social. 

Aplicando as regras positivadas e adotando a real acepção do termo bioma (sem lhe atribuir uma interpretação que não foi contemplada pelo legislador), milhares de proprietários rurais conseguiram regularizar a reserva legal de seus imóveis, seguindo não apenas a Lei nº 12.651/2012, mas também normas e regulamentos editados em nível estadual para dar cumprimento ao regramento federal. A legitimidade dos atos já praticados – de boa-fé e em confiança de conformidade com as disposições legais e regulamentares – seria fulminada, criando-se um alto grau de insegurança jurídica.

Introduzir, onde o legislador não previu, um novo critério para a regularização da reserva legal pode resultar em esvaziamento jurídico, técnico e econômico da compensação, colocando no percentual de déficit de reserva legal imóveis atualmente considerados regularizados, além de impedir que outros, em situação semelhante, possam também se regularizar. 

De um lado haverá aumento do nível de déficit e, de outro, perímetros de vegetação excedente, antes passíveis de negociação para compensação, ficarão desprovidos de valor enquanto “floresta em pé”. O resultado será a perda de biodiversidade já existente em extensas porções de terra coberta por vegetação excedente, posto que, sem um fim econômico, certamente serão suprimidas para uso alternativo. Vale lembrar que, se são consideradas áreas excedentes, é porque os imóveis em que estão localizadas já estão dotados de reserva legal própria instituída e ainda há mais vegetação disponível.

Portanto, respeitadas as opiniões divergentes e os diversos interesses envolvidos, concluímos que as disposições dos artigos 48, parágrafo 2º, e 66, parágrafo 5º, inciso IV, e parágrafo 6º, inciso II, da Lei nº 12.651/2012 devem ser mantidas como constitucionais. Trata-se de solução (i) que reflete e respeita a escolha do legislador, (ii) está em consonância com o entendimento majoritário prolatado por ocasião do julgamento das ações constitucionais – que ratificaram o bioma como critério para a compensação da reserva legal – e (iii) irá garantir um equilíbrio entre preservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico, além de reafirmar a segurança jurídica e a estabilidade de atos praticados legitimamente

(*) Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico no dia 29.08.2024. 

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