Por Édis Milaré e Lucas Tamer Milaré (*)
Com base na abrangente definição de poluidor, subministrada pela Lei 6.938/1981 (art. 3°, IV), acrescida do disposto do art. 12, caput, do mesmo diploma legal, condicionando a concessão de incentivos e financiamentos às indústrias à apresentação de licença ambiental, muito se tem discutido acerca da responsabilização das instituições financeiras por danos ambientais de seus mutuários.
A propósito, vale lembrar que a Lei 11.105/2005, ao estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvem organismos geneticamente modificados- OGMs, previu a obrigatoriedade de as instituições financiadoras dessas atividades exigirem a comprovação da sua regularidade1 perante a autoridade competente, sob pena de corresponsabilidade pelos eventuais efeitos adversos decorrentes do descumprimento da lei.
Essas disposições foram suplementadas pela Resolução 4.327/2014, iniciativa pioneira do Banco Central do Brasil, dispondo sobre as diretrizes que devem ser observadas no estabelecimento e na implementação da Política de Responsabilidade Socioambiental pelas instituições financeiras e todas aquelas autorizadas a funcionar pelo referido banco. (art.2° e § 1°)
A bem ver, boa parte da doutrina especializada, na esteira de entendimento do STJ firmado no âmbito do REsp 1.071.741/SP, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, j. 24.03.2009, considerando civilmente responsável pelo dano ambiental “quem financia para que façam”, já vinha preconizando a equiparação da responsabilidade das instituições financeiras públicas e privadas, enxergando todas como possíveis poluidores indiretos. Colha-se: “as instituições financeiras podem ser consideradas poluidores indiretos nas hipóteses em que as obras ou atividades financiadas possam promover ou promovam a degradação da qualidade ambiental, ainda que a atividade financiada seja lícita e esteja sendo desenvolvida dentro dos standards legais, regulamentares e técnicos”,2 com fundamento no art. 225, § 3º, CF, e arts. 3º, IV e 4º, VII, Lei 6.938/1981. Por certo, entendimento de tal jaez acaba por desafiar o intérprete para uma ressignificação das teorias preordenadas a identificação do nexo causal mais consentâneas com os anseios de justiça exigidos pela moderna sociedade.
Com efeito, acoimar-se a instituição financeira de poluidor indireto, em casos que tais, não parece conformar-se aos mínimos princípios legais e de razoabilidade. Pense-se em dano ambiental decorrente de acidente verificado em um empreendimento que detém todos os atos autorizativos exigidos pela legislação (alvarás, licenças ambientais e autorizações similares). Num caso como esse, não estaria faltando, para tornar certa a obrigação reparatória da entidade ou do órgão financeiro, o pressuposto do nexo causal que, a todas as luzes, deve ser examinado com juízo de ponderação, sob pena de inaceitável absurdo? A resposta parece óbvia!
Bem por isso, ensaia o legislador brasileiro, no momento, uma reação a esse estado de coisas, em ordem a flexibilizar o rigor que se vem impondo à responsabilidade do poluidor indireto, como se vê, p. ex., do Projeto de Lei 702/2021, de autoria do Deputado Carlos Bezerra (MDB-MT), que visa a alterar a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/1981), para tratar da responsabilidade civil de instituições financiadoras e de fomento de atividades, obras ou empreendimentos potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos ambientais, introduzindo-se um art. 14-A à referida lei, cujo caput teria o seguinte teor: “Art. 14-A. Para os fins do disposto no § 1º do art. 14 desta lei, não se consideram poluidoras as instituições de crédito supervisionadas pelo Banco Central do Brasil ou as entidades governamentais de fomento que comprovem ter cumprido seu dever de diligência ambiental em relação aos projetos, obras, empreendimentos e atividades que financiem ou fomentem”.
Nesse mesmo sentido, vale registrar a proposta materializada no Projeto de Lei 2.159/2021 (Lei Geral do Licenciamento Ambiental), prevendo que a exigência de licença válida imuniza a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, inclusive instituição de fomento, de responsabilidade por eventuais danos ambientais decorrentes da execução da atividade ou do empreendimento licenciado a terceiros diretamente envolvidos. Confira-se:
“Art. 54 […] § 1º. Para as atividades e os empreendimentos sujeitos a licenciamento, não exigida a apresentação da licença ambiental nos termos do caput deste artigo, a pessoa física ou jurídica será subsidiariamente responsável, na medida e proporção de sua contribuição, por eventuais danos ambientais decorrentes da execução da atividade ou do empreendimento pelo terceiro diretamente envolvido; § 2º. As instituições supervisionadas pelo Banco Central do Brasil, no exercício de suas funções legais e regulamentares, não possuem dever fiscalizatório da regularidade ambiental de seus clientes, devendo exigir, para o financiamento de atividades ou de empreendimentos sujeitos a licenciamento ambiental, a correspondente licença ambiental, sob pena de serem subsidiariamente responsáveis, na medida e proporção de sua contribuição, por eventuais danos ambientais decorrentes da execução da atividade ou do empreendimento pelo terceiro diretamente envolvido.”
Por certo, não há como se determinar que uma instituição financeira fiscalize e monitore in loco o empreendimento ou a atividade que subsidia. Isso porque o poder de polícia é atividade estatal indelegável, o que a impede de avaliar pari passu o escorreito emprego dos recursos destinados.
(*) Artigo publicado originalmente no portal Análise Editorial no dia 5 de junho de 2024.
1 “Art. 2º. As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos desta Lei e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais consequências ou efeitos advindos de seu descumprimento. […] § 4º. As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela CTNBio, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação”. (Destacou-se).
2 Ver, por todos, RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade civil ambiental do financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2012. p. 274, e, em especial, o item 6, sobre financiamento e responsabilidade civil ambiental, p. 211 e ss.