Hortas urbanas comunitárias nutrem espaços e novas relações com a cidade

31 de enero de 2024

Embora muitos associem a cidade de São Paulo, que recém completou 470 anos, a uma paisagem cinzenta composta por um conglomerado de concreto e de edifícios a perder de vista, cerca de um terço de seu território apresenta características rurais. Conformado por um intenso e acelerado processo de urbanização que constituiu a metrópole mais densamente povoada do país, o rural paulistano é um território complexo, descontínuo, pontuado por núcleos urbanos esparsos, onde convivem áreas de formação florestal, unidades de conservação, chácaras, áreas de cultivo e de produção agrícola.

Pressionadas, mais e mais, pelo avanço da mancha urbana, as bordas da cidade costumam ainda sofrer com grandes intervenções urbanas (como, por exemplo, o Rodoanel), impactando as condições de saneamento, moradia, trabalho, dos que vivem nessas regiões, e, consequentemente, as ambientais, em prejuízo da biodiversidade e das áreas verdes adjacentes. 

Daí a própria demarcação da zona rural pelo Plano Diretor Estratégico de um município como São Paulo assumir especial relevância, tendo em vista o desafio, que se impõe, cada vez mais e de modo geral, às cidades, de um desenvolvimento urbano – e sustentável – realmente comprometido com a agenda ambiental. O que pressupõe uma concepção multifuncional do meio rural, que compreende este território como área de produção de alimentos, de fornecimento de água, bem como de preservação de biodiversidade e, consequentemente, de serviços ecossistêmicos, além de suas possibilidades de lazer, atividades de ecoturismo, agroecologia, produção orgânica, gerando inúmeros postos de trabalho e significativos benefícios para a cidade como um todo.

Nesse sentido, vê-se com particular interesse o movimento de ascensão da chamada agricultura urbana e periurbana, que funciona como um objeto espacial integrador entre o rural e o urbano, e sob a necessária observância das áreas de preservação ambiental, das quais a vida das populações urbanas e crescentes tanto depende. Em um mundo cuja tendência é tornar-se cada vez mais urbanizado, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO considera a agricultura urbana e periurbana como uma importante estratégia para combater a insegurança alimentar e nutricional, gerando, inclusive, renda e inclusão social nas cidades, e para atenuar as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a poluição e o desperdício. 

Tendo como norte cidades mais sustentáveis, inclusivas e resilientes ao clima, encontram-se entre as principais questões da agricultura urbana e periurbana: garantir a autonomia/soberania alimentar; diminuir a distância entre quem produz e quem consome, estabelecendo circuitos mais curtos de distribuição e abastecimento; promover a troca entre conhecimentos científicos e técnicas tradicionais de cultivo, consolidando uma agricultura agroecológica de base orgânica; produzir alimentos mais saudáveis e livres de insumos químicos, gerando renda e inclusão social, sobretudo, nas regiões periféricas; reduzir a abertura de áreas para a produção agrícola, contribuindo assim para a redução da perda de biodiversidade. 

Muitas são as formas e iniciativas dessa vertente da agricultura que têm se multiplicado nos territórios urbanos: quintais produtivos, cultivo de plantas alimentícias não convencionais (PANCS) e de flores comestíveis, hortas terapêuticas, hortas pedagógicas em escolas, hortas socioeducativas em instituições prisionais, agroflorestas urbanas, hortas comunitárias, etc. No município de São Paulo, de acordo com a plataforma Sampa+Rural, vinculada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Urbano, que reúne informações sobre desenvolvimento rural sustentável, turismo, meio ambiente, alimentação saudável das áreas rurais da capital, existem 758 unidades de produção agrícola, 9 aldeias Guarani, 152 hortas urbanas, 287 hortas em espaços públicos. 

Em geral, são pequenas unidades de agricultura familiar que produzem hortaliças, frutas e legumes, sendo uma parte deles orgânicos e agroecológicos. Essa produção breca o avanço da urbanização e contribui com a segurança alimentar, saúde e renda, além de revitalizar áreas urbanas e combater ilhas de calor. As hortas urbanas comunitárias, que se encontram tanto em espaços públicos quanto privados, em cantos de regiões centrais e bairros de classe média ou em terrenos, muitas vezes abandonados, nas periferias, a todos esses benefícios antes citados agregam ainda a importante função de se tornarem um fator de coesão comunitária, provocando mudanças positivas, com significativa ampliação da participação popular, na gestão territorial.

A multifuncionalidade das hortas urbanas comunitárias ganhou também a atenção do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU), criado em 2014, e integrado em 2016 ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e que, a partir de então, passou a centralizar estudos e debates sobre agricultura urbana e periurbana no município de São Paulo. O grupo mantém parcerias com instituições de ensino e pesquisa no Brasil e no exterior, além de congregar pesquisadores de várias unidades pertencentes à USP – Faculdade de Medicina, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Instituto de Energia e Ambiente, Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental. A “Horta da FMUSP”, plantada na laje de um dos edifícios da Faculdade de Medicina da USP, na Avenida Dr. Arnaldo, que produz de forma orgânica legumes, verduras e várias PANCs, com a participação de alunos, docentes, funcionários e moradores da cidade, foi fundada pela própria coordenadora do GEAU, a professora Thais Mauad, pesquisadora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e especialista em saúde urbana. Além dos benefícios dos alimentos produzidos e colhidos no local, a horta possibilita abordar vários temas correlacionados com o ensino na faculdade, como o das práticas integrativas junto à medicina tradicional, o impacto da alimentação na saúde dos pacientes, sem contar as trocas de experiência sobre técnicas e práticas de cultivo que ocorrem entre os hortelões.

Também situadas em regiões mais centrais de São Paulo encontram-se, entre tantas outras, a “Horta do Ciclista”, na Avenida Paulista, a “Horta das Corujas”, no bairro de Pinheiros, a “Horta das Nascentes”, no bairro de Pompéia. 

As hortas urbanas comunitárias que se instalaram nas regiões mais periféricas de São Paulo, principalmente nas zonas Sul e Leste, acabaram tendo um grande impacto para a comunidade do entorno. A ONG Cidades Sem Fome que administra várias hortas na Zona Leste de São Paulo, além da geração de trabalho e renda, pretende estimular o modelo de uma agricultura sustentável na cidade. Para isso, incumbe-se de toda a organização do processo: desde a escolha dos terrenos, a captação de recursos, a capacitação dos trabalhadores, até a instalação de pontos de vendas onde os produtos possam ser comercializados pelos próprios cooperados em um sistema de autogestão. 

Periféricas ou centrais, as hortas urbanas espalhadas pelo território paulistano – e capazes de produzir alimentos saudáveis, promover inclusão social, revitalizar espaços antes abandonados ou subtilizados, de aumentar a quantidade de áreas verdes permeáveis, diminuindo, assim, o risco de enchentes – são iniciativas estritamente horizontalizadas e que surgem da base comunitária. E, se isso, por um lado, evidencia o quanto a cidade ainda carece de políticas públicas mais sólidas que sejam não apenas destinadas mas norteadas pela agricultura urbana, por outro, não se pode negar, que foi, a partir dessas iniciativas, que muitas pessoas comuns começaram a se engajar participando de conselhos municipais, audiências públicas, reuniões com a administração municipal, e não apenas em defesa de suas próprias hortas, mas das condições de todo um grupo, o dos agricultores urbanos. Ao cumprir uma série de funções, as hortas urbanas comunitárias acabam por potencializar a ação comum, intensificando, na perspectiva da agricultura urbana e periurbana, as possibilidades de mobilização, engajamento e atuação popular e civil nas questões – e na gestão territorial – da cidade de São Paulo.

Fontes consultadas:
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/zona-rural/
https://sampamaisrural.prefeitura.sp.gov.br/
https://jornal.usp.br/ciencias/hortas-comunitarias-resistem-a-urbanizacao-na-maior-metropole-do-brasil/
https://www.wwf.org.br/?87320/O-potencial-das-hortas-urbanas-na-seguranca-alimentar-da-cidade-de-Sao-Paulo
https://escolhas.org/hortas-urbanas-geram-impactos-sociais-na-zona-leste-de-sao-paulo/
https://brasil.mongabay.com/2023/09/como-hortas-comunitarias-estao-mudando-o-jeito-de-produzir-comida-na-periferia-de-sao-paulo/

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