Na semana passada, nossa Leading Lawyer Flavia Rocha Loures, responsável pela área de Direito Ambiental Internacional e Comparado do nosso escritório, concedeu uma entrevista ao canal Al Jazeera Árabe. A entrevista foi concedida em inglês, com tradução simultânea para o Árabe. Segue, assim, o texto explicativo de nossa líder sobre o conteúdo da conversa.
“A entrevista tratou de aspectos de direito internacional relacionados à longa disputa sobre o uso das águas do Nilo e que envolve três países ribeirinhos. A disputa tem por objeto a represa chamada ‘Grand Ethiopian Renaissance Dam’ (GERD). Como indica seu nome, o projeto é motivo de orgulho para a Etiópia, situada na cabeceira, e cuja própria população também contribuiu recursos para garantir a sua finalização. Rio abaixo, o Egito depende das águas do Nilo de forma significativa e clama ser titular de direitos históricos sobre a quase totalidade de tais recursos. Situado entre a Etiópia e o Egito na bacia, o Sudão tem assumido posições variadas ao longo da construção da GERD, ora mais favorável à Etiópia, ora alinhada com o Egito.
Abordou-se, assim, as fontes das regras internacionais aplicáveis às relações entre países que compartilham recursos hídricos. No campo, existem regras consolidas de direito internacional consuetudinário, entre as quais o princípio de uso equitativo e razoável, que não admite a priorização em tese de quaisquer tipos de uso, inclusive os históricos, de que se vale o Egito. O princípio impõe que a distribuição das águas e dos benefícios associados ocorra à luz do caso concreto, levando em conta todas as circunstâncias relevantes, os interesses dos países envolvidos e a proteção dos ecossistemas da bacia.
No caso específico da disputa sobre a GERD, a questão é complexa e envolve a sucessão de estados e a validade de acordos adotados no período de colonização. De forma breve, porém, considera-se que o Egito estaria utilizando as águas acima da cota que lhe seria cabível sob critérios de equidade e razoabilidade e negando à Etiópia o direito de participar nos benefícios desses recursos que compartilham. Esse parece ser o entendimento dominante entre os juristas internacionais e com o qual concordamos com base nas normas consuetudinárias que se aplicam ao tema na ausência de tratado em vigor entre os países envolvidos.
O direito internacional das águas está codificado em duas convenções globais da ONU . Em muitos casos, as normas nelas contidas são detalhadas em acordos sobre bacias específicas, que disciplinam o uso, a proteção e a gestão hídrica e costumam estabelecer organismos internacionais próprios para apoiar o processo de cooperação entre os estados ribeirinhos, inclusive na prevenção e resolução de diferenças. No caso do Nilo, existe um tratado neste sentido, negociado entre os países banhados pela Bacia como um todo, mas o Egito não tem se mostrado disposto a ratificá-lo. Existe, também, um acordo informal e não vinculante, por meio do qual os três países haviam definido diretrizes gerais de conduta e bases de negociações. Com a finalização da etapa de construção e o início das operações de enchimento da represa, a disputa reacendeu-se e, até momento, não há acordo sobre as condições de sua futura operação.
A entrevista também rapidamente abordou os mecanismos de direito internacional voltados à solução de disputas internacionais, e de que se podem valer os estados que compartilham bacias hidrográficas. Em relação à GERD, a controvérsia principal desdobrou-se em desacordo sobre o fórum mais adequado para apoiar as negociações sobre a sua operação. Enquanto o Egito apela ao Conselho de Segurança da ONU, a Etiópia defende que este é um dos papeis da União Africana. Como o direito internacional não possui organismo superior para resolver essa questão, nenhum país pode ser forçado a aceitar um ou outro fórum. E a disputa só pode ser levada à Corte Internacional de Justiça se os três países envolvidos assim acordarem. Embora, neste caso, a Corte não tenha sido acionada, historicamente, ela atuou sobre diversas disputas sobre o direito internacional das águas.”