A aplicação da teoria “Comunidade de Interesses” em bacias hidrográficas compartilhadas foi o tema da tese de doutorado da nossa Leading Lawyer Flavia Rocha Loures

31 de August de 2022

No final de maio, nossa Leading Lawyer Flavia Rocha Loures, responsável pela nossa área de Direito Internacional Ambiental e Comparado, defendeu com êxito a sua tese de doutorado em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Xiamen, na China. A tese teve por objeto a teoria de direito internacional denominada Comunidade de Interesses (‘a Teoria’), aplicável às bacias hidrográficas compartilhadas entre dois ou mais Estados. Exemplos dessas bacias são a Amazônica e a do Prata, das quais faz parte o Brasil. Para Flavia, a compreensão sobre essa teoria permanece insuficiente e dá ensejo a interpretações contraditórias entre os juristas, daí o seu interesse em ter se dedicado ao estudo desse tema. A seguir, a entrevista que fizemos com ela sobre o conteúdo da sua pesquisa.

Newsletter Milaré: Em linhas gerais, do que trata a teoria “Comunidade de Interesses”, objeto da sua tese? 

Flavia Rocha Loures: De modo geral, a Teoria invoca os interesses comuns entre Estados ribeirinhos, de natureza ambiental, social, econômica, cultural, jurídica, política e assim por diante. Tais interesses emergem da unidade física, que é um sistema hídrico, e é fundada na interdependência e interesses compartilhados que essa unidade inevitavelmente cria. 

A tese foca na “comunidade de interesses” para esclarecer seus elementos, funções e status, com vistas a proporcionar claridade no direito internacional das águas enquanto ferramenta facilitadora da cooperação transfronteiriça.

A Teoria é um conceito relativo, i.e., incide sobre as relações entre Estados na medida apropriada para atender a seus interesses, permitir o exercício de seus direitos e assegurar o cumprimento de suas obrigações – entre si, na realização do desenvolvimento sustentável e perante atores não-estatais.

Newsletter Milaré: Qual a contribuição da sua tese para as pesquisas que giram em torno da aplicação da  teoria “Comunidade de Interesses”?

Flavia Rocha Loures: A principal contribuição da tese é a construção de quadro jurídico-analítico para o estudo da Teoria a partir da identificação, análise e delineação de seus elementos, com base em tratados e jurisprudência que mencionam ou são aceitos como refletindo comunidade de interesses.

Os elementos primários são aqueles comumente presentes em tratados que implícita ou explicitamente incorporam a Teoria, e consistem no seguinte: 

(i) abordagem por bacia, i.e., a adoção da bacia como unidade biogeográfica básica (não necessariamente exclusiva) de gestão, uso e proteção das águas e de ecossistemas interconectados – elemento este que informa os demais; 

(ii) acordos internacionais customizados, que formalizam, aprofundam, regulam e institucionalizam o esforço cooperativo, oferecendo maior segurança jurídica, especificando interesses comuns prioritários, delineando modalidades de cooperação conjunta e formas de engajamento complementares e promovendo a reconciliação de possíveis interesses unilaterais conflitantes; 

(iii) organismos de bacia especificamente estruturados, que, com os acordos, formam o regime jurídico-institucional sob o qual a Teoria é aplicada, situando-se no centro do processo cooperativo para possibilitar ação institucional conjunta, por meio ou sob os auspícios da organização, principalmente em prol de interesses comuns; e

(iv) prevalência da cooperação conjunta, i.e., cooperação mais intensa, sistemática e, com frequência, proativa em comparação com bacias em que a Teoria não predomina enquanto base de inter-relações estatais; ela é complementada por outras modalidades de engajamento para a realização de interesses comuns e a harmonização de interesses potencialmente conflitantes.

A presença de elementos secundários é menos consistente e não tão bem desenvolvida, mas ocorre em quase todos os tratados analisados:

(i) coerência com outros regimes de cooperação, como no caso de acordos de sub-bacia em relação a tratados cobrindo a bacia como um todo;

(ii) solidariedade entre os Estados ribeirinhos, a exemplo da assistência mútua em caso de desastres; e 

(iii) integração ao processo cooperativo de atores interessados operando na bacia.

Em relação às suas funções, os tratados e as decisões analisadas demonstram como a Teoria é capaz de informar a codificação, clarificação, interpretação e, possivelmente, o desenvolvimento progressivo de normas do direito internacional das águas. São casos específicos de cooperação e de aplicação do direito internacional que se baseiam no marco teórico estudado. 

Newsletter Milaré: No que refere ao campo do Direito Internacional da Águas, é possível destacar pontos da teoria estudada e a relação com os problemas ambientais contemporâneos?

Flavia Rocha Loures: Em termos de pesquisas futuras, o quadro jurídico-analítico construído em meu trabalho pode ser utilizado como lente para o estudo de fontes relevantes adicionais, de modo a verificar a efetiva incorporação da Teoria na prática do direito internacional das águas.

Como reflexões finais, a tese indaga sobre o tipo de cooperação necessária em um mundo de rápido declínio da biodiversidade, crescente demanda de recursos hídricos, mudanças climáticas e uma sociedade civil cada vez mais engajada; e questiona se o direito atual é adequado para facilitar tal cooperação. Situações em que se deveria aplicar a “comunidade de interesses” estão se tornando cada vez mais corriqueiras e perceptíveis e isso representa uma tendência nas relações entre Estados. Como ocorreu no passado, quando o direito internacional evoluiu, focando inicialmente em navegação e depois abarcando os múltiplos usos das águas, é provável que o faça novamente, reimaginando as bases e as formas de cooperação que devem predominar. 

Nesse sentido, “comunidade de interesses” deve ser bem compreendida, pois, provavelmente, aponta para a direção de desenvolvimento do direito internacional das águas à medida que aumenta a interdependência entre Estados e a complexidade dos interesses comuns e conflitantes a serem tutelados. “Comunidade de interesses” permite a reflexão sobre o presente e futuro papel, relevância e evolução progressiva do direito internacional das águas enquanto base jurídica para a cooperação transfronteiriça conjunta, de longo prazo e mutuamente benéfica entre Estados ribeirinhos interdependentes nas unidades biogeográficas, jurídico-políticas e socioambientais que são as bacias compartidas.

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