No final de maio, nossa Leading Lawyer Flavia Rocha Loures, responsável pela nossa área de Direito Internacional Ambiental e Comparado, defendeu com êxito a sua tese de doutorado em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Xiamen, na China. A tese teve por objeto a teoria de direito internacional denominada Comunidade de Interesses (‘a Teoria’), aplicável às bacias hidrográficas compartilhadas entre dois ou mais Estados. Exemplos dessas bacias são a Amazônica e a do Prata, das quais faz parte o Brasil. Para Flavia, a compreensão sobre essa teoria permanece insuficiente e dá ensejo a interpretações contraditórias entre os juristas, daí o seu interesse em ter se dedicado ao estudo desse tema. A seguir, a entrevista que fizemos com ela sobre o conteúdo da sua pesquisa.
Newsletter Milaré: Em linhas gerais, do que trata a teoria “Comunidade de Interesses”, objeto da sua tese?
Flavia Rocha Loures: De modo geral, a Teoria invoca os interesses comuns entre Estados ribeirinhos, de natureza ambiental, social, econômica, cultural, jurídica, política e assim por diante. Tais interesses emergem da unidade física, que é um sistema hídrico, e é fundada na interdependência e interesses compartilhados que essa unidade inevitavelmente cria.
A tese foca na “comunidade de interesses” para esclarecer seus elementos, funções e status, com vistas a proporcionar claridade no direito internacional das águas enquanto ferramenta facilitadora da cooperação transfronteiriça.
A Teoria é um conceito relativo, i.e., incide sobre as relações entre Estados na medida apropriada para atender a seus interesses, permitir o exercício de seus direitos e assegurar o cumprimento de suas obrigações – entre si, na realização do desenvolvimento sustentável e perante atores não-estatais.
Newsletter Milaré: Qual a contribuição da sua tese para as pesquisas que giram em torno da aplicação da teoria “Comunidade de Interesses”?
Flavia Rocha Loures: A principal contribuição da tese é a construção de quadro jurídico-analítico para o estudo da Teoria a partir da identificação, análise e delineação de seus elementos, com base em tratados e jurisprudência que mencionam ou são aceitos como refletindo comunidade de interesses.
Os elementos primários são aqueles comumente presentes em tratados que implícita ou explicitamente incorporam a Teoria, e consistem no seguinte:
(i) abordagem por bacia, i.e., a adoção da bacia como unidade biogeográfica básica (não necessariamente exclusiva) de gestão, uso e proteção das águas e de ecossistemas interconectados – elemento este que informa os demais;
(ii) acordos internacionais customizados, que formalizam, aprofundam, regulam e institucionalizam o esforço cooperativo, oferecendo maior segurança jurídica, especificando interesses comuns prioritários, delineando modalidades de cooperação conjunta e formas de engajamento complementares e promovendo a reconciliação de possíveis interesses unilaterais conflitantes;
(iii) organismos de bacia especificamente estruturados, que, com os acordos, formam o regime jurídico-institucional sob o qual a Teoria é aplicada, situando-se no centro do processo cooperativo para possibilitar ação institucional conjunta, por meio ou sob os auspícios da organização, principalmente em prol de interesses comuns; e
(iv) prevalência da cooperação conjunta, i.e., cooperação mais intensa, sistemática e, com frequência, proativa em comparação com bacias em que a Teoria não predomina enquanto base de inter-relações estatais; ela é complementada por outras modalidades de engajamento para a realização de interesses comuns e a harmonização de interesses potencialmente conflitantes.
A presença de elementos secundários é menos consistente e não tão bem desenvolvida, mas ocorre em quase todos os tratados analisados:
(i) coerência com outros regimes de cooperação, como no caso de acordos de sub-bacia em relação a tratados cobrindo a bacia como um todo;
(ii) solidariedade entre os Estados ribeirinhos, a exemplo da assistência mútua em caso de desastres; e
(iii) integração ao processo cooperativo de atores interessados operando na bacia.
Em relação às suas funções, os tratados e as decisões analisadas demonstram como a Teoria é capaz de informar a codificação, clarificação, interpretação e, possivelmente, o desenvolvimento progressivo de normas do direito internacional das águas. São casos específicos de cooperação e de aplicação do direito internacional que se baseiam no marco teórico estudado.
Newsletter Milaré: No que refere ao campo do Direito Internacional da Águas, é possível destacar pontos da teoria estudada e a relação com os problemas ambientais contemporâneos?
Flavia Rocha Loures: Em termos de pesquisas futuras, o quadro jurídico-analítico construído em meu trabalho pode ser utilizado como lente para o estudo de fontes relevantes adicionais, de modo a verificar a efetiva incorporação da Teoria na prática do direito internacional das águas.
Como reflexões finais, a tese indaga sobre o tipo de cooperação necessária em um mundo de rápido declínio da biodiversidade, crescente demanda de recursos hídricos, mudanças climáticas e uma sociedade civil cada vez mais engajada; e questiona se o direito atual é adequado para facilitar tal cooperação. Situações em que se deveria aplicar a “comunidade de interesses” estão se tornando cada vez mais corriqueiras e perceptíveis e isso representa uma tendência nas relações entre Estados. Como ocorreu no passado, quando o direito internacional evoluiu, focando inicialmente em navegação e depois abarcando os múltiplos usos das águas, é provável que o faça novamente, reimaginando as bases e as formas de cooperação que devem predominar.
Nesse sentido, “comunidade de interesses” deve ser bem compreendida, pois, provavelmente, aponta para a direção de desenvolvimento do direito internacional das águas à medida que aumenta a interdependência entre Estados e a complexidade dos interesses comuns e conflitantes a serem tutelados. “Comunidade de interesses” permite a reflexão sobre o presente e futuro papel, relevância e evolução progressiva do direito internacional das águas enquanto base jurídica para a cooperação transfronteiriça conjunta, de longo prazo e mutuamente benéfica entre Estados ribeirinhos interdependentes nas unidades biogeográficas, jurídico-políticas e socioambientais que são as bacias compartidas.