Pagamento por serviços ambientais em concessões florestais sob a ótica da Medida Provisória 1.151/2022

31 de janeiro de 2023

                                                                                Por Édis Milaré e Flavia Rocha Loures

A Lei 14.119/2021 institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). O instituto jurídico de PSA também é objeto da Medida Provisória 1.151/2022. O presente artigo analisa os dispositivos dessa MP relacionados àquela Política Nacional, assim como à Política Nacional sobre Mudança do Clima, instituída pela Lei 12.187/2009 e regulamentada pelo Decreto 11.075/2022, que estabelece os procedimentos de elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação e dá outras providências para fomentar o mercado de carbono voluntário e regulado, nacional e internacional.

Segundo a Exposição de Motivos da MP, o Brasil “precisa aproveitar [seu] enorme potencial de conservação da biodiversidade também para gerar créditos de carbono, uma vez que ele é signatário do acordo de Paris, onde se prevê a transação desses créditos, bem como para criar alternativas de desenvolvimento sustentável na região amazônica. O mercado de carbono é um instrumento que pode contribuir enormemente para a obtenção das metas climáticas brasileiras e gerar divisas para o nosso país. Para isto, é necessário que a legislação ambiental incorpore cada vez mais o uso de instrumentos econômicos de conservação”. É nesse contexto que a MP deve ser examinada.

Entre outras medidas, a MP altera a Lei 11.284/2006. Esta, por sua vez, dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável e disciplina a concessão florestal, i.e., “delegação onerosa, feita pelo poder concedente, do direito de praticar manejo florestal sustentável para exploração de produtos e serviços numa unidade de manejo, mediante licitação, à pessoa jurídica, em consórcio ou não, que atenda às exigências do respectivo edital de licitação e demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado” (Lei 11.284/2006, art.3º, VII). Face ao “avanço bastante aquém do potencial das concessões em unidades de manejo florestal”, a motivação das alterações introduzidas pela MP, a seguir analisadas, seria a remoção de entraves para “potencializar o instituto da concessão florestal”, de modo que um número cada vez maior de interessados se disponha a pagar mais pelas concessões e que estas passem a ser mais utilizadas enquanto instrumentos econômicos de gestão ambiental e de combate à mudança climática (Exposição de Motivos).

Nesse sentido, com a sua nova redação, o § 2º do art. 16 da Lei 11.284/2006 prevê a inclusão no objeto da concessão do direito de comercializar não apenas créditos de carbono, mas também, de forma mais ampla, créditos decorrentes da prestação de serviços ambientais (“biocréditos”). O mesmo dispositivo expande, no âmbito de concessões florestais, a possibilidade de comercialização de créditos de carbono para além da modalidade de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo. Desse modo, elimina-se a proibição de comercialização de créditos decorrentes da emissão evitada de carbono em florestas naturais, até então imposta pelo inc. VI do § 1º do mesmo art. 16 da Lei 11.284/2006.

Ademais, o novo § 4º, I, do art. 16 da mesma Lei elenca serviços ambientais entre as alternativas de exploração de produtos e de serviços florestais não madeireiros, que podem ser desenvolvidos sob a concessão. Outras atividades de exploração autorizadas são: acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado para fins de conservação, de pesquisa, de desenvolvimento e de bioprospecção; restauração florestal e reflorestamento de áreas degradadas; atividades de manejo voltadas à conservação da vegetação nativa ou ao desmatamento evitado; turismo e visitação na área outorgada; e produtos obtidos da biodiversidade local da área concedida. Como se vê, além de se referir a serviços ambientais em geral, a MP especifica algumas ações relacionadas à vegetação nativa, implicitamente conferindo prioridade a tais serviços.

Conforme abordada na Lei 11.284/2005, a prestação de serviços ambientais possui natureza de serviço público, ficando, assim, sujeita aos princípios da regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade das tarifas (Lei 8.987/1995, art. 6º). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, serviço público é “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.”1

Nesse novo contexto jurídico, o inc. XVIII do art. 20 da Lei 11.284/2006, incluído pela MP, passa a exigir que o edital de licitação contenha as regras para que o concessionário possa explorar a comercialização de crédito por serviços ambientais, inclusive de carbono.

A MP também altera a Lei 11.516/2007, a qual, inter alia, dispõe sobre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. É adicionado o art. 14-D, segundo o qual concessões em unidades de conservação (UCs) federais poderão contemplar em seu objeto o direito de desenvolver e comercializar créditos de carbono e de serviços ambientais. A possibilidade dessas concessões deriva do art. 14-C da Lei em comento, que permite licitações quanto a serviços, áreas ou instalações em UCs federais para a exploração de atividades de visitação voltadas à educação ambiental, à preservação e conservação do meio ambiente, ao turismo ecológico, à interpretação ambiental e à recreação em contato com a natureza. Aqui, créditos de carbono e serviços ambientais em geral podem contemplar serviços ecossistêmicos associados à redução de emissões ou remoção de gases de efeito estufa; à manutenção ou aumento do estoque de carbono florestal; e à conservação e melhoria da biodiversidade, do solo e do clima. Com isso, no contexto de concessões em unidades de conservação, a MP expande as UCs sobre as quais PSAs podem incidir. Enquanto a Lei 11.516/2007, em seu novo art. 14-D, refere-se genericamente a “unidades de conservação”, o art. 8º, III, da Lei 14.119/2021 permitia a inclusão no Programa Federal de PSA apenas de unidades de conservação de proteção integral, reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável. A importância de se possibilitar essa expansão, para fomentar o mercado de créditos de carbono e contribuir para a arrecadação de recursos para a gestão de UCs, vem expressamente contemplada na Exposição de Motivos.

Como base para a realização de pagamentos por serviços ambientais e a comercialização de biocréditos, o art. 4º da MP reconhece como ativo financeiro o ativo ambiental de vegetação nativa que preencha quatro requisitos: constitua incentivo a atividades de melhoria, restauração florestal, conservação e proteção da vegetação nativa em seus biomas; propicie valoração econômica e monetária da vegetação nativa; conte com identificação patrimonial e contábil; e possibilite a utilização de tecnologias digitais com registro único, imutável e com alta resiliência a ataques cibernéticos. Esses requisitos são cumulativos, devendo estar presentes os quatro elementos para a caracterização do ativo financeiro, e podem decorrer de uma variedade de “benefícios ecossistêmicos” (art. 4º, IV). Aqui, a MP utiliza terminologia diferente daquela empregada pela Lei 14.119/2021. Esta baseia-se na definição da expressão serviços ecossistêmico, i.e., “benefícios relevantes para a sociedade gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção, recuperação ou melhoria das condições ambientais” (art. 2º, II).

A expressão benefícios ecossistêmicos vem de novo empregada no art. 5º da MP, que prevê a possibilidade de inclusão no objeto de concessões – não só em florestas públicas e unidades de conservação, mas também em ouras terras públicas e bens dos entes federativos – de execução de projetos de PSA e de comercialização dos créditos deles resultantes. Os objetivos dessa alteração são dois: aumentar a colaboração entre os entes federados para a consecução das metas climáticas do Brasil e gerar recursos financeiros para os seus orçamentos (Exposição de Motivos).

Os dispositivos da MP podem ser aplicados a contratos de concessão florestal vigentes na data de sua publicação, mediante a sua emenda: se houver concordância expressa do poder concedente e do concessionário; sejam preservadas as obrigações financeiras perante a União; e fiquem mantidas as obrigações de eventuais investimentos estabelecidos no contrato. Da mesma forma que no caso da conceituação de ativos ambientais, os requisitos aqui são cumulativos. Esses dispositivos foram inseridos para assegurar a ausência de impactos negativos financeiros ou orçamentários, como despesas diretas ou indiretas ou diminuição de receita para o ente público (Exposição de Motivos).

A MP possui efeitos imediatos, mas fica sujeita à deliberação do Poder Legislativo e a potenciais alterações efetuadas por este último, que, para tanto, tem o prazo de 60 dias, prorrogáveis por mais 60 (Constituição Federal, art. 62). Quanto à adoção de medidas provisórias e à correspondente apreciação do parlamento, o STF explicita o seguinte: “Se a medida provisória é espécie normativa de competência exclusiva do presidente da República e excepcional, pois sujeita às exigências de relevância e urgência – critérios esses de juízo político prévio do presidente da República –, não é possível tratar de temas diversos daqueles fixados como relevantes e urgentes. Uma vez estabelecido o tema relevante e urgente, toda e qualquer emenda parlamentar em projeto de conversão de medida provisória em lei se limita e circunscreve ao tema definido como urgente e relevante. […] De outro lado, […] compete ao Poder Legislativo realizar o seu controle […] político e jurídico, pois se debruça sobre a análise das circunstâncias (urgência e relevância) exigidas pela própria Constituição para a sua edição.” [ADI 5.127, voto do rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 15-10-2015, P, DJE de 11-5-2016.] 

Portanto, respeitados os parâmetros constitucionais e jurisprudenciais destacados pelo STF, cumpre à Câmara e ao Senado avaliar se os temas objeto da MP podem ser caracterizados como relevantes e urgentes. Segundo a Exposição de Motivos, trata-se de medida relevante e urgente em face dos compromissos assumidos pelo Brasil sob o Acordo de Paris de redução em 50% de suas emissões até 2030 tendo por base o ano de 2005.

Direito Administrativo, 20ª edição, Atlas (2007), p. 90.

(*) Artigo publicado no Portal Migalhas no dia 27.01.2023.

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