A importância do patrimônio cultural na esteira da Semana de 22

28 de fevereiro de 2022

A despeito das inúmeras controvérsias que continuam se atualizando em torno da Semana de Arte Moderna de 1922, é inegável, até por isso, que o evento, que, neste ano, completa cem anos, estabeleceu um marco simbólico na história do modernismo e no debate sobre o moderno no país no século XX. Ocorrida no ano do centenário da Independência do Brasil, mais especificamente nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, tendo como palco o Theatro Municipal de São Paulo, reuniu expoentes de diversos campos artísticos, sobretudo de São Paulo e Rio de Janeiro, que, pela primeira vez, se colocavam, publicamente, como um movimento que pretendia romper com o academicismo e o passadismo vigentes, reivindicando uma identidade genuinamente nacional, não colonizada, voltada em definitivo para a constituição de um novo país moderno e de vanguarda. Não por acaso, os modernistas da Semana de 22 advogavam como princípios básicos: o direito à pesquisa estética permanente; a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização de uma consciência criadora nacional.

Contudo, naquele contexto dos anos de 1920 (pós Primeira Guerra, crescente urbanização de São Paulo submetida à elite cafeeira, havia ambivalentes concepções de nação e nacionalismo), embora o moderno fosse associado a uma ideia de novo, de avanço, de progresso, ele comportava múltiplos significados na economia, na política e nas artes, cujos arranjos no Brasil se davam também de forma conflituosa e não menos contraditória. No próprio Grupo dos Cinco – Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade e Menotti del Picchia – não havia uma consonância estética/ideológica sem arestas, o que se evidenciou nos desdobramentos dos anos subsequentes à Semana.

Constituída, na maior parte, por pessoas abastadas, com bom trânsito e relações com os dirigentes da Primeira República, essa geração de modernistas foi fortemente influenciada pelas vanguardas europeias da época, em suas passagens e temporadas, sobretudo, em Paris. Fruto desses encontros, o contato com o poeta franco-suíço Blaise Cendrars e com o primitivismo europeu marcaria, significativa e principalmente, as trajetórias de Oswald e Mário, que perceberam e traduziram, nas obras e na vida, que em uma nova cultura moderna nacional era indispensável a busca de uma brasilidade profunda, que este futuro que se pretendia construir dependia, portanto, de um resgate radical do passado brasileiro, e das manifestações populares negras e indígenas. Não por acaso, a primeira visita de Cendrars ao país em 1924, a convite de Paulo Prado, que também desempenhara um papel fundamental na realização da Semana de 22, feita com o grupo modernista, passando pelo Rio de Janeiro, em pleno Carnaval, e depois, durante a Semana Santa, pelas cidades históricas de Minas, ficou conhecida como viagem de “descoberta do Brasil”.

Embora Blaise Cendrars não tenha sido a única influência nessa valorização da brasilidade, constante, aliás, no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de Oswald de Andrade, que deu os contornos norteadores do que seria considerada uma facção primitivista do nosso modernismo (da qual comungavam Oswald, Mário, Tarsila, e ainda Carlos Drummond de Andrade), a viagem coletiva com o poeta franco-suíço levou o grupo a repensar a sua relação com as tradições, as manifestações populares, o passado do país, e, em decorrência, com a ideia de patrimônio cultural indispensável ao projeto de um Brasil moderno. (Sabe-se, obviamente, que esse “sentimento nacional” viria a assumir diferentes e até mesmo antagônicas feições, a exemplo do movimento integralista que ganharia força nas décadas de 1930 e 40 com outros integrantes da Semana de 22.)

De todo o modo, no retorno a São Paulo, após a viagem de “descoberta do Brasil”, uma das primeiras iniciativas da comitiva foi formar o que chamariam de Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, cuja redação do estatuto, em francês, ficou a cargo de Cendrars. Ali já se previa a necessidade não só da proteção de bens de interesse histórico e artístico do Brasil mas também dos instrumentos para tal fim, como a criação de uma lei de proteção, de uma série de ações de classificação, inventário, conservação e divulgação, além da criação de museus estaduais e de uma instituição nacional com um fundo de aquisição de obras. Porém, a inesperada Revolta Paulista iniciada em 5 de julho de 1924 acabaria por dispersar o grupo modernista interrompendo a criação dessa Sociedade. Posteriormente, em 1926, Oswald retomaria a ideia, de forma mais sucinta, propondo a Washington Luís, logo após a sua posse na presidência da República, a criação do Departamento de Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil com sede no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1928, cabe lembrar, Oswald lançaria seu “Manifesto Antropófago”, inspirado nos índios nativos do território anteriores à colonização portuguesa, formulando no conceito de antropofagia, de maneira ainda mais radical, as questões ambíguas que atravessaram o(s) modernismo(s) brasileiro(s) – internacionalismo/nacionalismo, estrangeiro/nativo “primitivo”, moderno/selvagem.

No mesmo ano, 1928, Mário de Andrade, por sua vez, publicou “Macunaíma”, seu trabalho, curiosamente, talvez mais Pau-Brasil. Mas a relação que, até então, entre os dois poetas, parecia, desde 1922, quase simbiótica, ao longo dos anos de 1930, e diante dos rumos políticos do país, desnudaria também conflitos e ambiguidades que os distanciariam no próprio campo político. De qualquer modo, Mário, já à frente do Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo, teve seu papel reconhecido na instituição, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, precursor do IPHAN, como formulador do anteprojeto da lei que criaria o órgão, a pedido do então ministro da Educação Gustavo Capanema, sob a era Vargas, em que sugeria uma concepção bastante abrangente de bem cultural (inspirado, ao que parece, em seu diário de viagens pelo norte e nordeste do país, feitas em 1927, 1928-29, que redundaria muito depois na publicação de sua obra “O turista aprendiz”), antecipando em muitos aspectos a dimensão do imaterial e simbólico, o que demoraria décadas, até no âmbito nas convenções internacionais, para se consolidar. Foi ainda encontrado, pela historiografia recente, no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), um documento, datado de 1930 e não assinado, intitulado “Bases para a Criação e Organização do Departamento de Defesa e Conservação do Patrimônio Artístico do Brasil”, atribuído, depois de análise e de cotejamento bibliográfico, a Oswald de Andrade, problematizando a questão sobre a participação e contribuição desses dois modernistas de 22 no debate do patrimônio cultural no Brasil, até então centralizada na figura de Mário de Andrade.

Fontes:

https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/145355/148854

https://www.cenpec.org.br/tematicas/10-anos-semana-22

https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/memorare_grupep/article/view/9000/5013

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