No fim do século XVI, segundo estimativas de antropólogos e historiadores, os Tupinambá, que habitavam uma extensa faixa da costa brasileira – abrangendo mais ou menos uma área entre onde atualmente se encontram os Estados de São Paulo e Bahia –podiam chegar até um milhão de indivíduos. Como é cediço, com a chegada dos europeus, essa e outras populações indígenas foram sendo reduzidas em decorrência de conflitos, doenças e no intenso processo de colonização. Embora tenham sido declarados extintos pelo Estado brasileiro no século XIX, a existência da etnia Tupinambá voltaria a ser oficialmente reconhecida pela Funai em 2001, com a identificação de famílias em terras indígenas localizadas no sul da Bahia e no Pará.
Dos antigos agrupamentos Tupinambá, dentre outros artefatos, foram retirados e levados para a Europa suntuosos mantos trançados com fibras naturais e penas vermelhas de pássaros guarás e azuis de araras, que eram usados em cerimônias indígenas solenes, como assembleias, enterros de entes queridos, e nos rituais antropofágicos (uma das mais imponentes celebrações realizadas pelos Tupinambá no período colonial: festivas e de cunho espiritual obedeciam a uma lógica muito própria de guerra e desforra). Em terras europeias, os objetos plumários passavam então a integrar coleções reais, para serem exibidos publicamente como símbolo do alcance do poder e influência da monarquia. Atualmente, sabe-se que ainda existem, no mundo inteiro, onze exemplares de manto tupinambá, produzidos entre os séculos XVI e XVII, todos conservados em museus etnográficos europeus (em Copenhagen, Basileia, Bruxelas, Paris, Florença e Milão), muitos dos quais não podem inclusive, por sua fragilidade, serem transportados nem expostos.
Até bem pouco tempo, em terras brasileiras, por sua vez, o manto conseguiu resistir, sobretudo, como herança imaterial da grande nação Tupinambá. De acordo com os indígenas que aqui vivem, esse objeto sagrado nunca deixou de habitar o mundo dos Encantados – entidades que habitam as matas, em uma dimensão paralela, e que guiam o povo Tupinambá, manifestando-se através de sonhos e outras visões. Seres de luz, são capazes de transitar no tempo e no espaço e, assim, não só constituem os guardiões da memória coletiva como também intervêm em questões sociais, políticas e econômicas da comunidade.
Em junho deste ano, foram anunciadas a doação e a volta definitiva de um dos onze mantos tupinambás remanescentes do século XVII da Europa para o Brasil, que deixará até o final do ano a coleção etnográfica do Nationalmuseet – o museu nacional da Dinamarca – para integrar o acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro, acometido por um incêndio brutal em 2018 e cuja conclusão das obras de reconstrução está prevista para 2026. Todavia, a instituição pretende apresentar o manto ao público a partir de 6 de junho de 2024, quando o museu completará 206 anos, com a reabertura de uma pequena sala de exposição. A cenografia será planejada por uma equipe do museu em parceria com os indígenas conhecedores dos objetos ritualísticos sagrados, visto que, como lembra o antropólogo e curador das coleções etnográficas João Pacheco de Oliveira, a instituição mantém um vínculo com os tupinambás há cerca de duas décadas.
Embora mantidas em sigilo, a fim de contornar debates ainda incômodos aos europeus sobre a repatriação de artigos que pertencem aos povos originários de outros continentes, e priorizar a ideia de uma cooperação cultural entre os dois países para ajudar a restaurar o acervo do museu no Rio de Janeiro, as tratativas foram conduzidas pela embaixada do Brasil na Dinamarca, ao longo dos últimos dois anos, de modo que a negociação se desse exclusivamente entre os museus e a comunidade Tupinambá.
Se bem que a volta do manto constitui uma afirmação importante na memória coletiva tupinambá, bem como em sua contínua capacidade de reinvenção, há, porém, conforme atestam as datas como o Dia Internacional dos Povos Indígenas, instituído pela ONU e celebrado em todo o 9 de agosto, desde 1995, muitos aspectos relacionados aos povos originários, e a maneira com a qual temos “convivido” com eles, ainda precisam ser resgatados, repensados, e, sobretudo, reinventados.
Fontes consultadas:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/longe-de-casa-2/
CAFFÉ, J.; GONTIJO, J. Expor o sagrado: o caso do manto tupinambá na exposição Kwá Yepé Turusú Yuriri Assojaba Tupinambá. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 7, n. 2, p. 23–47, 2023. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8670562. Acesso em: 29 jul. 2023.
https://piaui.folha.uol.com.br/volta-do-manto-tupinamba/