Por Édis Milaré e Maria Clara Rodrigues Alves Gomes
Não é recente a discussão acerca da aplicação e atendimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que trata do reconhecimento e proteção dos valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais próprios dos povos indígenas e tribais – em processos de licenciamento ambiental. Essa aplicação tem se mostrado desafiadora e gerado a judicialização de diversos casos, inclusive em razão da falta de regulamentação federal da matéria.
A respeito do tema, cumpre recordar que, no Brasil, a Convenção 169 da OIT foi aprovada pelo Decreto Legislativo 143, de 20.06.2002, e passou a vigorar a partir de 25.07.2003, quando o País enviou o instrumento de ratificação ao Diretor Executivo da OIT. Posteriormente, a Convenção foi promulgada, em 19.04.2004, por meio do Decreto 5.051/2004, assim como teve uma espécie de re-promulgação, por meio do Decreto 10.0881, de 05.11.2019, que estabelece sua execução e cumprimento integral. Isso denota que as disposições da Convenção estão previstas em lei, o que impõe dar-lhes o devido cumprimento.
No entanto, a falta de regulamentação de aplicação nacional da Convenção, definindo mais claramente as hipóteses de sua incidência, o momento adequado para sua realização e a forma de execução da escuta, vem exigindo dos interessados e aplicadores do direito a sua interpretação à luz da realidade brasileira, com base nas instituições e instrumentos que dispomos2. Por essa razão, inclusive, a oitiva em questão vem sendo tratada, na maioria dos casos, como uma etapa do processo de licenciamento ambiental, ensejando para a sua realização a observância das normas que regem tal matéria.
E para tratar da interpretação que vem sendo adotada no Brasil para sua aplicação, importa recordar duas disposições da Convenção: o artigo 1º, item 1, alínea ‘a’, de acordo com o qual “a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial”; e o artigo 6º, item 1, alínea ‘a’, que estabelece: “Art. 6º […] 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente […]”.
Tais disposições asseguram, portanto, o direito de comunidades indígenas e tribais de serem consultadas quando da adoção de medidas administrativas que as venham a afetardiretamente.
E, na qualidade de procedimento administrativo estabelecido pela Lei 6.938/1981, a Política Nacional de Meio Ambiente, como instrumento de gestão e controle ambiental, o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades que resultem em impactos negativos ao meio ambiente tem sido considerado o âmbito adequado – embora alguns defendam o contrário – para promover a oitiva de comunidades tradicionais interferidas, como indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, marisqueiras, dentre muitos outros, de modo a atender ao que preconiza a Convenção 169 da OIT.
Da leitura dos citados artigos 1º e 6º da Convenção 169 da OIT se extraem três aspectos relevantes para o exercício do direito ali albergado no contexto do licenciamento ambiental: (i) a comunidade interferida se caracterizar, de fato, como tribal (tradicional) ou indígena; (ii) o impacto a ela ocasionado ser direto; e (iii) haver sua adequada representação para a realização da escuta prévia, livre e informada.
Esses três aspectos, aliás, têm ocasionado amplo debate nos casos concretos, porque, como já referido, faltam critérios mais claros quanto a quais seriam as comunidades detentoras do direito à consulta prévia, livre e informada, ou seja, aquelas que ostentam as características estabelecidas pela Convenção, resultando no direito à oitiva específica prevista. Além disso, muito se discute acerca da obrigatoriedade, ou não, de escuta de comunidades em razão do nível de impacto (direto ou indireto) de determinadas atividades ou empreendimentos e de sua área de influência. Ademais, devido à representatividade das comunidades (ou à sua falta), tem sido desafiador estabelecer os procedimentos para a implementação da oitiva em questão de modo a permitir uma escuta realmente qualificada e adequada, com a participação de instituições alinhadas com a realidade e os interesses dos afetados.
No que se refere ao nível de interferência dos empreendimentos e atividades, vale destacar, por exemplo, que, com base nas regras que regem os processos de licenciamento no Brasil e em cumprimento à Convenção 169 da OIT, haveria a necessidade de oitiva de comunidades tradicionais afetadas quando se encontrem inseridas nas áreas diretamente interferidas por empreendimentos ou atividades que ocasionem significativo impacto ambiental.
Tal disposição, transportada para a realidade do licenciamento ambiental, enseja a interpretação de que a norma se aplicaria exclusivamente às comunidades da Área Diretamente Afetada – ADA, excluindo da oitiva estabelecida pela Convenção as comunidades indireta ou reflexamente afetadas. Isso não significa, contudo, a exclusão de tais comunidades do processo de licenciamento e da discussão acerca das interferências indiretas que poderiam ocorrer, sendo possível o exercício da participação, mediante oitiva, e o atendimento ao princípio da publicidade, por meio, por exemplo, das audiências públicas regulares do licenciamento.
Cabe destacar, também, que a definição do impacto direto estabelecido pela Convenção 169 da OIT dependerá da realização de estudos ambientais que instruirão o processo de licenciamento, uma vez que a oitiva deverá se realizar em seu bojo. Significa dizer que a Área de Influência Direta de um empreendimento e, portanto, as eventuais comunidades diretamente afetadas sujeitas a oitiva nos termos da Convenção 169 da OIT, somente poderão ser estabelecidas após a realização dos estudos ambientais do licenciamento.
Além disso, uma vez que admitida como etapa do processo de licenciamento, não se pode perder de vista que a consulta livre, prévia e informada das ‘tribos’ diretamente afetadas tem como escopo informar essas comunidades acerca dos impactos a serem gerados por determinando empreendimento ou atividade e das medidas que serão adotadas com vistas à sua minimização e compensação. Tal direito, embora fundamental, tem caráter informativo e participativo e não pode e nem deve obstar o desenvolvimento de atividades ou empreendimentos, na medida em que pertence ao órgão licenciador a competência para avaliar a viabilidade ambiental, inclusive sob o aspecto da interferência nas comunidades afetadas.
Ainda para ilustrar tal debate, mencione-se julgado do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1704452/SC, relatado pelo Ministro Og Fernandes, em que se discutiu justamente a necessidade, em atendimento à Convenção 169 da OIT, de oitiva de comunidade indígena face aos impactos de determinado empreendimento, tendo asseverado justamente a necessidade de estar evidenciado o impacto direto: “[…] A norma emanada na convenção relativa à consulta dos povos indígenas tem por objetivo tratar as situações em que a afetarão esses povos diretamente, situação que somente seria possível se houvesse uma interferência direta do empreendimento na área ocupada pelos indígenas […]”.
Este aspecto da extensão do impacto como critério para a realização de oitivas que a Convenção 169 da OIT preconiza como direito fundamental das comunidades tribais interferidas é, assim, apenas um ponto que enseja ampla reflexão e esforço interpretativo para o atendimento a tal norma no contexto dos processos de licenciamento. De qualquer forma, em sendo entendida como uma etapa intrínseca desse processo, certamente deverá estar alinhada com a Política Nacional do Meio Ambiente e com as normas que regem tal instrumento de gestão ambiental.
Até porque a própria Convenção prevê, em seu artigo 34,3 que a natureza e o alcance das medidas a serem tomadas para seu cumprimento devem ser determinados de forma flexível, considerando as condições de cada país. Ou seja, é necessário e desejável que ocorra uma conformação – inclusive de maneira flexível – entre a Convenção 169 da OIT e os diplomas normativos internos brasileiros a fim de que a norma possa ser aplicável e eficaz.
1 Referido Decreto 10.088/2019 foi editado para consolidar atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da OIT, ratificadas pelo Brasil. Assim, revogou o Decreto 5.051/2004, que promulgava a Convenção 169 da OIT, mas, novamente promulgou tal Convenção.
2 Alguns Estados têm buscado instituir normas que orientem a aplicação das disposições da Convenção. Outrossim, o INCRA editou a Instrução Normativa 128, de 30.08.2022, alterada pela Instrução Normativa 130, de 11.05.2023, dispondo a respeito de critérios e procedimentos administrativos e técnicos para a edição da Portaria de Reconhecimento e de decreto declaratório de interesse social, avaliação de imóveis incidentes em terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos, com reflexo direto sobre o debate atinente ao atendimento à Convenção.
3 “Artigo 34 – A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país”.