José Higídio
Existem atualmente milhões de processos na Justiça Federal contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) devido ao atraso na análise de benefícios previdenciários. Como a autarquia precisa cumprir o prazo legal, a maioria dos pedidos é aceita pelos magistrados, mas o INSS continua sem capacidade de reduzir a fila de espera. Assim, o efeito prático de tais ações é apenas passar algumas pessoas à frente de outras — e, consequentemente, atrasar a análise de quem não acionou o Judiciário.
Para resolver problemas semelhantes, a doutrina jurídica sugere mudar a lógica do processo tradicional. A ferramenta pensada para isso é o processo estrutural, ou estruturante — uma forma de lidar com conflitos coletivos e abrangentes ou violações contínuas de direitos por meio de medidas mais organizadas e consensuais, como a criação de planos a longo prazo.
“O que o processo estrutural busca fazer é resolver isso de uma forma mais coordenada, planejada, sustentável e duradoura, para evitar esse caos de ações individuais que ocorre em muitos casos”, explica o desembargador Edilson Vitorelli, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região.
O magistrado é o relator de uma comissão de juristas instalada no Senado em junho para elaborar um anteprojeto de lei sobre o processo estrutural. A ideia é formalizar regras para esse mecanismo, que já tem sido aplicado na prática.
Problemas estruturais
Apesar de não ser processualista, nem propriamente especialista no assunto — mas um grande entusiasta da ideia —, Milaré tem experiência na concepção de instrumentos processuais. Afinal, foi um dos autores da Lei da Ação Civil Pública (ACP), de 1985.
Ele explica que o processo estrutural é “flexível e colaborativo” e funciona por meio de “planos de ação estruturados, que incluem metas claras, cronogramas e a participação de todas as partes afetadas”. O objetivo é “uma solução consensual e sustentável para a questão em debate”.
Evidentemente, nem todos os problemas precisam de soluções estruturais. O advogado aponta que o processo estrutural é voltado a disputas dinâmicas, que estão em curso.
Conflitos estruturais são, geralmente, situações complexas que afetam diversos interesses e grupos sociais. São os chamados “litígios de natureza policêntrica”, que podem estar ligados a diversos temas: saúde pública, infraestrutura, educação, meio ambiente etc.
Muitas vezes, isso envolve a “reestruturação de instituições públicas ou privadas”. Ou seja, a preocupação não é “com eventos passados, mas com a correção do funcionamento das instituições para evitar violações futuras”.
Sergio Cruz Arenhart, procurador regional da República e também membro da comissão de juristas no Senado, indica que o objetivo do processo estrutural é intervir em uma estrutura em busca de um aperfeiçoamento.
Tais demandas não podem ser solucionadas de forma eficaz pelo processo civil tradicional, que lida com questões pontuais, específicas ou isoladas. Segundo Milaré, o processo estrutural “se afasta do modelo adversarial tradicional”.
Arenhart lembra que o processo civil tradicional não foi pensado para problemas estruturais. Na lógica tradicional, a relação jurídica é sempre de um autor contra um réu. Mas, quando existem diferentes grupos de interesses envolvidos, a relação “funciona dentro de uma estrutura de rede, policêntrica”.
Realidade problemática
Segundo Vitorelli, nos últimos anos, “o Brasil passou a ter uma série de conflitos de natureza estrutural que não são tratados de maneira estrutural”. Ou seja, o processo estrutural é “uma resposta para um problema que já existe” — conflitos que não podem ser totalmente resolvidos com medidas imediatas.
As ações contra o INSS pela demora na análise de benefícios são exemplo disso, assim como diferentes demandas por atendimentos de saúde — tanto de operadoras quanto do Sistema Único de Saúde (SUS).
Um caso do tipo foi conduzido de maneira estrutural na 6ª Vara Federal de Fortaleza. A ACP (Processo 0002012-48.2006.4.05.8100) discutia as longas filas de espera para cirurgias ortopédicas urgentes e de alta complexidade no Ceará. O governo estadual e a prefeitura da capital apontavam falta de recursos para fazer todas as cirurgias.
“Se o SUS só consegue fazer dez cirurgias ortopédicas por dia, não há ordem judicial que o faça fazer 11”, exemplifica o magistrado do TRF-6. Em ações individuais, pessoas conseguiam decisões favoráveis e passavam à frente na fila, mas “a ordem judicial não expande a capacidade de atendimento”.
A solução da Justiça Federal foi promover diálogos e construir um plano de ação, com prazos e metas graduais, para viabilizar os procedimentos, levando em conta as condições financeiras dos entes públicos.
Segundo o desembargador, o Judiciário e a doutrina de processo no Brasil não acreditam mais na “mágica da caneta, de que basta mandar e os problemas se resolvem”.
“Questões complexas exigem soluções complexas”, pontua Vitorelli. “O que o processo estrutural tenta oferecer é o campo fértil e adequado para que soluções complexas sejam obtidas.”
Soluções construídas
A principal característica de um processo estrutural, de acordo com o magistrado, é sua condução “consensual e dialogada, trazendo diversos atores que interferem naquele conflito para produzir uma solução aceitável para todo mundo”.
As prioridades são a negociação e a colaboração contínua entre os envolvidos, de forma a se atingir um consenso. A decisão judicial “impositiva” e “unilateral” é a última opção: ocorre “de forma subsidiária”, apenas se necessária, explica Milaré.
Segundo ele, o incentivo à cooperação e ao diálogo ocorre porque, muitas vezes, a negociação é “a forma mais adequada de resolver os litígios estruturais, que demandam uma solução que possa ser implementada progressivamente e adaptada às condições institucionais e financeiras envolvidas”.
A lógica, de acordo com Arenhart, é que o magistrado não determine algo, mas peça às partes uma proposta com cronograma para corrigir o problema, confira se ela é positiva e dê continuidade ao diálogo.
“No processo comum, o juiz não pergunta como você quer pagar a dívida. Tem de pagar a dívida e acabou”, diz o procurador. Já o processo estrutural é um “ambiente próprio” para soluções por meio do diálogo.
Para Milaré, esse funcionamento traz diversas vantagens. Ao evitar decisões impositivas, por exemplo, o processo estrutural “torna a solução mais legítima e aderente às necessidades reais dos envolvidos”.
Sem um confronto direto entre as partes e com a implementação gradual de planos com metas claras, as soluções tendem a ser mais estáveis, efetivas, duradouras e adaptáveis às necessidades e mudanças ao longo do tempo, segundo ele.
Além disso, “a natureza pública e transparente do processo estrutural assegura que as ações tomadas sejam amplamente acompanhadas e fiscalizadas pela sociedade, o que contribui para a legitimidade e accountability”.
A advogada Gláucia Coelho, doutora em Direito Processual Civil e sócia do escritório Machado Meyer Advogados, também destaca que a grande vantagem do processo estrutural é dar lugar de fala, pleito e participação a diferentes grupos afetados pela discussão. Em um processo comum e “bilateral”, nem todos são contemplados.
Mesmo em ações coletivas, na lógica tradicional, um ente — o Ministério Público ou associações, por exemplo — aciona a Justiça representando os interesses de pessoas que não participam efetivamente do processo. Gláucia lembra que, dentro de um grupo, os interesses não são necessariamente “uniformes”.
O processo estrutural quebra essa lógica linear. Ele é circular: ouve todos, busca o diálogo e possibilita uma resolução com “mais perspectiva de se projetar para o futuro e continuar se mantendo”.
Políticas públicas
Embora seu objetivo principal não seja a implementação de políticas públicas, o processo estrutural pode “intervir indiretamente” nelas, aponta Milaré.
As soluções consensuais podem afetar as políticas públicas, mas não há “imposição judicial de novas políticas” — ou seja, elas respeitam “as capacidades institucionais e orçamentárias dos envolvidos”.
Assim, o processo estrutural pode ser usado “como um instrumento para a implementação ou adequação de políticas públicas por meio de um processo judicial”. Muitas vezes, as situações submetidas a processos estruturais envolvem políticas públicas que “estão falhando ou não estão sendo devidamente implementadas”, de acordo com o advogado.
Segundo Arenhart, esse é “um dos empregos mais importantes” do processo estrutural hoje em dia. Afinal, são comuns ações coletivas relativas a problemas de condições carcerárias, habitação popular, direito à saúde, acesso ao ensino infantil, políticas de inclusão social etc.
Exemplos práticos
Mesmo ainda sem uma legislação específica e detalhada sobre o tema, juízes e tribunais brasileiros já vêm adaptando o processo tradicional e atuando de maneira estrutural há anos.
O Direito Ambiental é um campo muito fértil para isso. Um dos principais exemplos é a ACP do Carvão (Processo 93.8000533-4), de 1993, na qual a Justiça Federal adotou medidas estruturais para minimizar os impactos ambientais provocados pela extração de carvão no sul de Santa Catarina e garantir a recuperação de áreas deterioradas.
Mais recentemente, os processos sobre indenizações relativas aos rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, também envolveram pedidos estruturais. Os dois casos geraram acordos de reparação dos danos aos atingidos — o primeiro está na reta final de negociação, enquanto o segundo foi assinado em 2021.
Mas o processo estrutural não é exclusivo para questões ambientais. Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado técnicas estruturais para solucionar diversos casos.
A gestão do atual presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, até criou um Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec) para acompanhá-los, participar de reuniões e elaborar pareceres e notas técnicas.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 — na qual o Plenário reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, devido às inúmeras violações de direitos humanos — está dentro do escopo do processo estrutural.
Os ministros determinaram, no último ano, a elaboração de planos nacionais, estaduais e do Distrito Federal, em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça, para solucionar os problemas envolvendo os presídios. Outras medidas estabelecidas foram a liberação de recursos do Fundo Nacional Penitenciário e a aplicação de penas alternativas à prisão.
“Não adianta dar uma ordem judicial dizendo: ‘Façam-se boas prisões’. Isso não se faz assim”, ressalta Vitorelli.
Outras ADPFs tiveram tratamento parecido: a ADPF das Favelas (ADPF 635), na qual o Supremo determinou a criação de um plano de redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, especialmente em comunidades; a ADPF 709, em que a corte ordenou a elaboração de um plano para proteção da saúde da população indígena brasileira e a expulsão de invasores das suas terras; e a ADPF 742, na qual foi determinada a criação de um plano de combate à Covid-19 específico para a população quilombola.
A ADPF não é o único tipo de ação no STF que pode ter uma condução estrutural. No último mês de setembro, o Plenário concluiu os julgamentos de recursos extraordinários que definiram critérios sobre os casos excepcionais em que o Judiciário pode determinar o fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS (RE 566.471) e regras de responsabilidade dos entes federativos e competência na Justiça para ações sobre o tema (RE 1.366.243).
Neste último RE, a corte apenas homologou, com alguns ajustes, três acordos feitos entre a União, os estados, o DF e os municípios. Eles são frutos de debates ocorridos em uma comissão especial criada pelo relator, ministro Gilmar Mendes, e composta por representantes dos entes federativos e da sociedade civil.
O fornecimento de medicamentos é um dos assuntos mais complexos e polêmicos do Judiciário brasileiro, pois afeta dezenas de milhares de processos e tem forte impacto nas contas públicas e decisões do Executivo.
Moderação na intervenção
Algumas das preocupações mais recorrentes sobre o processo estrutural envolvem os limites da intervenção judicial em políticas públicas. Críticos do modelo apontam riscos de um maior “ativismo judicial”, que extrapolaria a competência dos magistrados e violaria a separação de poderes ao “substituir” o Legislativo e o Executivo.
Porém, para Arenhart, essa é “a crítica mais errada” possível, “porque a função do processo estrutural é justamente evitar que isso aconteça”.
Segundo o procurador, o processo estrutural é “uma forma de autocontenção da função jurisdicional, para evitar um excesso na atividade do juiz”. O magistrado, em vez de decidir tudo, estimula o diálogo e busca soluções com os envolvidos.
Vitorelli também ressalta que o ativismo é o oposto do que o mecanismo propõe: “Quem acha que isso realmente é um problema deveria ser um defensor ardoroso do processo estrutural”.
O desembargador afirma que o processo estrutural serve para moderar a intervenção judicial, e não para reforçá-la: “É um modelo de processo muito menos duro e menos interventivo do que se faz tradicionalmente”.