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Milaré

Identidade ecológica e o julgamento do Supremo 

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Introduzir, onde o legislador não previu, um novo critério para a regularização da reserva legal pode resultar em esvaziamento jurídico, técnico e econômico da compensação 

Por Édis Milaré e Thiago Sales Pereira

 Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter declarado, em 28 de fevereiro de 2018, no julgamento das ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937 e da ADC 42, a constitucionalidade, entre outros, do artigo 48, parágrafo 2º, e do artigo 66, parágrafos 3º, 5º e 6º da Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal) e reconhecido, por maioria de votos, que a adoção do bioma como critério para compensação de reserva legal é constitucional, a discussão não se encerrou com a publicação do acórdão. 

Em primeiro lugar, em razão de erro material, pois constou na ementa que oresultado do julgamento em relação à aplicação do artigo 48, parágrafo 2º (que prevêa compensação de reserva legal por meio de Cotas de Reserva Ambiental – CRA),seria, por suposta maioria, uma interpretação conforme segundo a qual acompensação só seria autorizada entre áreas com identidade ecológica. Entretanto,a análise dos votos revela que, na realidade, os ministros entenderammajoritariamente pela constitucionalidade do artigo 48, parágrafo 2º, sem invocar aidentidade ecológica – expressão que carece de definição técnica ou legal e cujaadoção representa, na prática, eliminar a possibilidade de compensação de reservalegal dentro do mesmo bioma. Correta, portanto, foi a oposição de embargos dedeclaração, cujo julgamento teve início em 25 de agosto de 2023, em sessão virtual, efoi interrompido em razão de pedido de vista. Atualmente, após pedido de destaque,aguarda-se a retomada em sessão presencial.

O equívoco, entretanto, é mais profundo. Pelo teor dos votos já proferidos até omomento, no julgamento dos EDs, verifica-se que, ao invés de reafirmar aconstitucionalidade do artigo 48, parágrafo 2º, e manter o adequado critério previstopelo legislador (mesmo bioma), o entendimento que está em construção estende aoartigo 66, parágrafos 5º e 6º, da lei a suposta interpretação conforme (na prática nãoalcançada) conferida ao parágrafo 2º do artigo 48, no sentido de exigir identidadeecológica entre áreas para fins de compensação de reserva legal.

A questão preocupa, uma vez que representa mais do que a identificação de mesmobioma e corresponde a impor perfeita equivalência (espelhamento) entre ascaracterísticas ecológicas de um perímetro de vegetação excedente e as de outro emque se verifica o déficit de reserva legal. Na prática, cumprir esta exigência éimpossível: não há um ecossistema idêntico a outro.

O rol de critérios previstos na Lei nº 12.651/2012 para a compensação da reservalegal vai além do bioma, abarcando uma série de outros fatores, entre eles aidentificação detalhada do imóvel, de seu proprietário e das características de uso eocupação, o que gera subsídios para a formulação de políticas públicas. Exige-setambém a emissão e aprovação de laudos por órgãos técnicos, o que contribui parao levantamento de perfil socioeconômico e ambiental de atividades e regiões e criaum valioso banco de dados a ser utilizado para outros fins – como regularizaçãofundiária, gestão de recursos hídricos e planejamento para a redução de desigualdades regionais e sociais-, além de promover a preservação de áreasprioritárias e assegurar que os imóveis rurais cumpram sua função social.

Aplicando as regras positivadas e adotando a real acepção do termo bioma (sem lheatribuir uma interpretação que não foi contemplada pelo legislador), milhares deproprietários rurais conseguiram regularizar a reserva legal de seus imóveis,seguindo não apenas a Lei nº 12.651/2012, mas também normas e regulamentoseditados em nível estadual para dar cumprimento ao regramento federal. Alegitimidade dos atos já praticados – de boa-fé e em confiança de conformidade comas disposições legais e regulamentares – seria fulminada, criando-se um alto grau deinsegurança jurídica.

Introduzir, onde o legislador não previu, um novo critério para a regularização dareserva legal pode resultar em esvaziamento jurídico, técnico e econômico dacompensação, colocando no percentual de déficit de reserva legal imóveisatualmente considerados regularizados, além de impedir que outros, em situaçãosemelhante, possam também se regularizar.

De um lado haverá aumento do nível de déficit e, de outro, perímetros de vegetaçãoexcedente, antes passíveis de negociação para compensação, ficarão desprovidos devalor enquanto “floresta em pé”. O resultado será a perda de biodiversidade jáexistente em extensas porções de terra coberta por vegetação excedente, posto que,sem um fim econômico, certamente serão suprimidas para uso alternativo. Valelembrar que, se são consideradas áreas excedentes, é porque os imóveis em queestão localizadas já estão dotados de reserva legal própria instituída e ainda há maisvegetação disponível.

Portanto, respeitadas as opiniões divergentes e os diversos interesses envolvidos,concluímos que as disposições dos artigos 48, parágrafo 2º, e 66, parágrafo 5º, incisoIV, e parágrafo 6º, inciso II, da Lei nº 12.651/2012 devem ser mantidas comoconstitucionais. Trata-se de solução (i) que reflete e respeita a escolha do legislador,(ii) está em consonância com o entendimento majoritário prolatado por ocasião dojulgamento das ações constitucionais – que ratificaram o bioma como critério para acompensação da reserva legal – e (iii) irá garantir um equilíbrio entre preservaçãoambiental e desenvolvimento socioeconômico, além de reafirmar a segurançajurídica e a estabilidade de atos praticados legitimamente. 

* Artigo publicado hoje (29) no jornal Valor Econômico

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